
A censura dos ídolos
O chargista Duke matou a pau a discussão sobre as biografias autorizadas e não autorizadas. “Sou neto do Lobo Mau e exijo que você retire da biografia a parte da história em que o lobo come a vovozinha”. O tema teve grande repercussão porque o mesmo princípio deste debate pode ser estendido a inúmeras situações da vida moderna em que entram em conflito dois valores fundamentais da sociedade: o interesse coletivo e a proteção do indivíduo, seja da tutela do Estado ou da própria sociedade. Por sinal, os dois princípios estão consagrados no mesmo artigo (quinto) da Constituição Brasileira de 1988. De um lado, o bem maior de uma sociedade que se pretenda democrática: a garantia da liberdade de expressão, da livre manifestação sem a censura prévia, com a ressalva do veto ao anonimato. No outro corner, o direito à vida privada, à honra e à preservação da imagem das pessoas. O mesmo artigo já prevê o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente da violação.
Na era da sociedade da informação, a privacidade está tornando um bem abstrato, sem muito amparo na realidade do dia a dia. Mesmo o mais anônimo dos cidadãos, está exposto às câmeras de vigilâncias das ruas, às mídias sociais, aos estabelecimentos que solicitam inúmeras informações em uma simples operação comercial, sem falar do olhar indiscreto da vizinhança. Por assim escrever, a vida privada está em vias de extinção. A presidente Dilma Rousseff — com e-mails e telefones grampeados — que o diga!
Quando o interesse público e o privado entram em conflito, a sociedade precisa fazer uma opção. Naqueles casos em que não tem jeito, é uma ou outra, por questão de princípio, deve prevalecer o interesse coletivo que consagra a liberdade de manifestação e de pensamento. Não tem razão de invocar agora a privacidade, aqueles que a vida inteira se beneficiaram da fama e da popularidade, além de ganharem muito dinheiro com a exposição pública.
A pretexto de aquinhoarem mais com a venda das biografias, alegam, matreiramente, o direito “indevassável da privacidade”. Nesta composição desafinada com a própria história, atravessaram a letra da liberdade de expressão os ídolos da MPB: Milton Nascimento, Djavan, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso e outros menos famosos. As posições conservadoras do rei Roberto Carlos sobre este e outros temas são conhecidas e não surpreendem. A decepção maior ficou mesmo com as posturas de Chico Buarque (a gente quer ter voz ativa no nosso destino mandar...), Caetano Veloso (é proibido proibir...), Milton Nascimento (quero a liberdade, quero o vinho e o pão...) e Gilberto Gil (os lucros são muito grandes, mas ninguém quer abrir mão...).
A sorte é que uma vez criada, a obra de arte não pertence mais ao artista, torna-se domínio público. Assim, a escorregada dos ídolos neste velho paralelepípedo da censura vai passar e as criações geniais continuarão caminhando contra o vento dos pensamentos mesquinhos.
Como conheceríamos com profundidade a nossa própria história se os escritores e biógrafos dependessem da autorização dos herdeiros? Sem liberdade para escrever biografias, não desvendaríamos as ambiguidades de Getúlio Vargas, o ditador cruel que perseguiu os adversários políticos ao mesmo tempo em que lançou as bases da industrialização do Estado Brasileiro. Na biografia de Fernando Collor precisa constar que o ex-presidente saqueou 80% da poupança dos brasileiros em março de 1990. O mesmo vale para os artistas e os cantores. A história não tem uma versão única, é feita de fatos contraditórios que ensejam interpretações diversas.
Não há um relato definitivo para contar a respeito de um biografado, pois a própria percepção muda com o passar do tempo. No transcorrer de uma vida, a memória apaga fatos e redimensiona a narrativa. Assim como a vida, a história também é feita de versões. O texto não passa de uma tentativa de se aproximar da verdade ideal, trilhando os caminhos da ética, da isenção e da busca pela objetividade. Impedir que essas visões de um processo histórico floresçam é uma tentativa velada de censura para preservar o interesse econômico. Não se pode cercear o princípio da liberdade por conta da exceção. Que a democracia amadureça com as biografias autorizadas e não autorizadas! A última palavra, neste caso, fica com o leitor.
Murilo Pinheiro
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