A censura na espreita

A censura na espreita

O tempo passa, o país avança em algumas questões, mas não se livra das manifestações inquisidoras que retiram de porões obscuros os velhos fantasmas que já assombraram esta república em um passado não muito distante. A maior parte dos ataques à igualdade vem de onde menos se espera. Da pura insatisfação de grupos elitistas que não toleram a contrariedade dos interesses ou a simples perda da zona de conforto. Na maior parte do tempo, em pomposas solenidades, essas autoridades recitam discursos igualitários com termos rebuscados. Nesse "faz de conta", representam personagens em um jogo de cena e se autodeclaram iguais aos demais mortais.  No fundo, por trás da toga ou da gravata cara, são contumazes apreciadores das “vantagens adquiridas”, cultivam privilégios sorrateiros e desfrutam com furor de tratamentos diferenciados. 

Embora se trate de um valor abstrato, a liberdade de manifestação se apresenta como o bem mais valioso que a sociedade possui. No entanto, muitos só aprendem a valorizar aquilo que perdem. O que se obtém sem muito esforço soa como uma concessão gratuita e costuma ficar relegado a planos inferiores. Para defender a liberdade de opinião, esta nação de altos contrastes tem instituições vigilantes e porta-vozes vibrantes que entram em ação quando as concepções cerceadoras e proibitivas se materializam de forma cristalina no declarado abuso do poder. Isso foi o que ocorreu na mais recente tentativa de censura à imprensa protagonizada, quem diria, por dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Tófolli e Alexandre de Moraes. A dupla se articulou nas antessalas do STF e decidiu tratar as críticas e os ataques aos integrantes da corte pelas regras do interesse próprio, contrariando o que diz a lei. O lamentável episódio teve grande repercussão na mídia, pois a tentativa de burlar as regras partiu justamente da instância maior, que tem por dever de ofício zelar pelo cumprimento da lei. 

Sob o argumento de proteger o STF e seus integrantes de “notícias falsas”, Tófoli e Alexandre de Moraes decretaram a volta da censura. Proibiram a revista Crusoé e o site O Antagonista de divulgarem informações sobre o possível envolvimento de integrantes do STF com a operação Lava Jato. Governos anteriores já tentaram controlar a informação. Não é preciso ser um jurista de saber notório para entender que a censura no Brasil está proibida pela Constituição. Os dois ministros sabem que todos aqueles que incorrerem em crimes de calúnia, difamação e atentados contra a honra podem ser processados na forma da lei. A mesma legislação também prevê a separação dos poderes e dos atos processuais. Um investiga (Polícia) outro processa (Ministério Público) e um terceiro ente julga (juízes). Assim se tenta assegurar o justo tratamento das partes. Não pode haver uma santíssima trindade concentrada em um poder só, do “eu investigo, processo e condeno.” 

Com a reação de jornalistas, entidades de classes, órgãos de imprensa e juristas respeitados, entre eles o ministro mais antigo da corte, Celso de Mello, o estado de sítio apregoado pela dupla Tófolli e Moraes caiu em apenas três dias. O ato de censura não resistiu ao clamor da opinião pública.  “O Estado não tem poder algum para interditar a livre circulação de ideias ou o exercício da liberdade constitucional de manifestação do pensamento ou de restringir e de inviabilizar o direito fundamental do jornalista de informar, de pesquisar, de investigar, de criticar e de relatar fatos e eventos de interesse público, ainda que do relato jornalístico possa resultar a exposição de altas figuras da República... Eventuais abusos da liberdade de expressão poderão constituir objeto de responsabilização a posteriori”, observou Celso Mello.  

Se o ato dos ministros foi uma tentativa de retrocesso, a reação da própria mídia e da sociedade foi positiva, pois conseguiu vencer um round de uma batalha contra a instituição mais poderosa do país. Algumas vezes, a resposta da sociedade consegue dobrar os poderosos. A liberdade de imprensa não é uma reivindicação corporativista, mas algo que sustenta a própria democracia. Ninguém desconhece que alguns usuários transformaram as redes sociais em palco de ofensas e de difamações. A mídia comete exageros quando busca audiência sem critérios e sem investigação rigorosa. Esses abusos também precisam ser punidos. O inquérito que investiga os autores de ofensas e ameaças ao Supremo, aberto ilegalmente pelos dois ministros nos descaminhos da “interpretação”, ainda permanece como uma ameaça à liberdade de expressão no país. Sinal evidente de que uma batalha foi ganha, mas que a luta contra a censura se trata de uma guerra sem fim

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