A civilização do espetáculo

A civilização do espetáculo

Você está na sua casa vendo TV e de repente o telejornal mostra a execução de uma pessoa em um país distante. Segundos depois aparece um acidente de trânsito “incrível” em que uma pessoa sofre um impacto violento. Num piscar de olhos uma celebridade deslumbrante cruza um tapete vermelho. Em livro publicado recentemente, o ganhador do prêmio nobel de literatura, Mario Vargas Llosa, fez um ensaio sobre os parâmetros da sociedade atual, analisando as influências na música, na arte, na literatura, no cinema, na política e até no futebol. A abordagem mais interessante feita pelo renomado escritor peruano está no capítulo que empresta o nome ao livro: “a civilização do espetáculo”.

Vargas Llosa abre o capítulo afirmando que o entretenimento ocupa o primeiro lugar na escala de valores da sociedade atual. Assinala que não há nenhum demérito na procura pelo relaxamento e pela diversão, mas adverte que a transformação do entretenimento passageiro em valor supremo traz como consequências a banalização da cultura e a generalização da frivolidade dos comportamentos. A explicação dessa tendência tem a ver com o período de desenvolvimento econômico que sucedeu as duas grandes guerras mundiais. A substituição da escassez pela oferta abundante de produtos abriu espaço para o bem-estar, para a liberdade de costumes e a multiplicação da indústria da diversão. Ortega e Gasset batizou esse espírito crescente de o “Deus folgazão”, personificado pelo amante do luxo e do frívolo. Para o escritor, essa louvável filosofia teve o indesejável efeito de trivializar e mediocrizar a vida cultural. Aos poucos, o conteúdo superficial foi enquadrando o paladar da maioria. A significação da cultura foi perdendo a sua relação mais próxima com a língua, com as crenças, usos e costumes para ser entendida apenas como uma maneira agradável de passar o tempo.

No campo em que Vargas Llosa milita de forma profícua, por exemplo, a literatura, tal efeito resultou em uma produção ligth, que não exige do leitor uma concentração intelectual mais intensa. Nas escolas e nas universidades, no quesito leitura, essa tendência ao esforço mínimo se manifesta no critério dos alunos que julgam a qualidade e a validade de um texto pela espessura (o número de páginas). Nesse processo de produção e formação cultural, as imagens estão substituindo o raciocínio e as ideias. Isso explica em parte a primazia dos meios audiovisuais, cinema, televisão e agora internet, sobre os livros.

Na crítica análise do escritor, os sintomas mais visiveis da banalização cultural podem ser vistos na tela do cinema. O efeito especial passou a ser o maior protagonista do filme em detrimento do papel do diretor, do trabalho do roteirista e da própria escolha do tema. O controverso guru da massificação global, Marshall McLuhan, uma espécie de profeta desse apocalipse cultural, chamava esse bombardeio de flashes de “um banho de imagens”, de natureza primária e passageira, fadado a embotar a sensibilidade e o intelecto do público.

Quando examina as artes plásticas na modernidade, Vargas Llosa fica ainda mais corrosivo. “O desaparecimento de consensos mínimos sobre os valores estéticos faz com que nesse âmbito a confusão reine, pois já não é possível discernir com certa objetividade o que é ter e não ter talento, o que é belo e o que é feio, qual obra representa algo novo e duradouro e qual não passa de fogo de palha. Essa confusão transformou o mundo das artes plásticas num carnaval em que genuínos criadores e oportunistas embusteiros andam misturados, sendo frequentemente difícil de distingui-los. Inquietante antecipação de abismos a que pode chegar a uma cultura que sofre de hedonismo barato e que sacrifica pelo divertimento qualquer outra motivação e desígnio”.

O escritor peruano conclui o capítulo escrevendo que na civilização do espetáculo o cômico virou rei. Os espectadores vão perdendo a memória e rendem-se à próxima novidade, não importa qual, seja uma cena de morte ou de destruição. A audiência recai sobre o insólito e o escandaloso. Para Vargas, Llosa, a vocação maledicente, escabrosa e frívola dá o tom cultural dos tempos atuais. Há um elemento mórbido sustentado pelo crescente interesse pelas tragédias, pelos crimes em séries e pelas perversões sexuais. A forma importa mais que o conteúdo e a aparência mais que a essência. A representação do gesto e o descaramento ocupam o lugar do sentimento e das ideias.  A frivolidade virou maneira de entender o mundo para transformar o entretenimento na aspiração suprema, esquecendo que a vida não se restringe à diversão. Não se pode abrir mão da consciência, mesmo que isso implique em dor, mistério e frustração.

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