
Confissão de derrota
Juca Kfouri faz parte de um seleto time de jornalistas, que, numa época de tantas falcatruas, conseguiu destaque profissional, mantendo intacta sua credibilidade, sua independência e o senso crítico aguçado. Nunca fez parte do time de cronistas despolitizados que trata o esporte apenas como entretenimento, fechando os olhos para a relação, muitas vezes promíscua, com a política. Se a conquista da Copa de 1958 serviu para impulsionar o Brasil de Juscelino Kubitschek, o tricampeonato de 1970 foi amplamente explorado pela ditadura militar para desviar a atenção da opinião pública e amenizar o estado de censura. Juca Kfouri pegou esse viés como norte para as pautas. Foi um pouco antes, na década de 60, que começou a militância no esporte e na política, marcado pela censura do Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968. Segundo o próprio cronista, o título que melhor representa a sua trajetória fica expresso no “militante da notícia”.
No campo da política, enfrentou a censura da ditadura militar e chegou a ser preso por fazer parte da Aliança Libertadora Nacional (ALN), um grupo de esquerda que se opôs à ditadura, enveredando até mesmo pela luta armada. Também participou ativamente das Diretas Já e manteve contato com os presidentes da história recente do país. Contudo, foi no jornalismo esportivo que Juca Kfouri marcou alguns gols de placa. À frente da revista Placar foi responsável por desvendar e denunciar a chamada “máfia da loteria esportiva”, um dos maiores escândalos do futebol. O jornalista se tornaria um crítico contumaz da gestão do futebol e do esporte brasileiro, principalmente de seus principais dirigentes, envolvidos com a corrupção desde longa data. João Havelange (envolvido em corrupção na FIFA), Ricardo Teixeira (que pode ser preso se deixar o Brasil), José Maria Marin (preso nos Estados Unidos), Marco Polo Del Nero (que pode ser preso se sair do Brasil) e Carlos Arthur Nuzman (que chegou a ser preso, acusado de pagamento de propina e compra de votos para a Olímpiada do Rio) formam a longa lista que foi objeto de centenas de denúncias do jornalista que, em contrapartida, recebeu vários processos. Para Kfouri, o grupo de dirigentes citados acima foi responsável por impedir o crescimento do futebol profissional e do esporte brasileiro durante décadas. “Hoje, a desgraça pessoal dessa cartolagem não muda essa realidade e não representa nenhum avanço. Continuamos sendo um país que exporta pés de atletas”, afirma o corintiano apaixonado que se posicionou publicamente contra a construção do Itaquerão com dinheiro público.
Depois de acompanhar a política e o esporte brasileiros durante quase 50 anos, Juca Kfouri lançou um livro de memórias. Na escolha do título resolveu homenagear Pablo Neruda e Darcy Ribeiro. Fez uma adaptação de um livro do poeta chileno (Confesso que Vivi), para escolher o nome do livro lançado no final de 2017, o “Confesso que Perdi”. Menciona também Darcy Ribeiro que costumava dizer que “prefiro o orgulho das minhas derrotas à vergonha de ficar ao lado dos vencedores”. Se escritores, dirigentes, celebridades e egocêntricos gostam de enaltecer as próprias vitórias, Juca Kfouri fez uma ode comedida às suas derrotas, o que chamou atenção para o livro, já a partir da escolha do título. Num tom melancólico enfatiza 1982, o ano da morte de Elis Regina, da vitória dos governadores de oposição e do insucesso da encantadora Seleção de Telê Santana, formada por craques dentro e fora do campo.
O título pessimista também se estende à política e à onda crescente de intolerância. Juca Kfouri declara que nunca foi petista, mas se posicionou contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Mantém relações cordiais com Fernando Henrique Cardoso que foi seu orientador na Faculdade de Ciências Sociais da USP. Por transitar entre correntes opostas foi chamado de “Petralha” e de “Tucanalha” com manifestações que ocorreram na porta do apartamento onde mora, um episódio lamentável que bem retrata a intolerância do Brasil atual.
Depois da prisão e dos processos contra os principais dirigentes do esporte brasileiro, até a última hora, seus amigos tentaram convencê-lo a mudar o título para quem sabe “Confesso que Empatei”. O desencanto de um intelectual reconhecido com a situação política e o desejo de compartilhar essa sensação se tornam significativos nesse momento em que o país está à procura de novos rumos. Além da Copa de 1982 e do vexame de 2014, Juca Kfouri considera que o Brasil perdeu também a cordialidade, o respeito, a educação e o afeto. A elite brasileira não se preocupou em diminuir as desigualdades sociais. Os alertas de Darcy Ribeiro para a necessidade de investir em educação foram ignorados e a violência explodiu nas favelas do Rio de Janeiro. Desencantado, mas resistente, aos 67 anos, Juca Kfouri não perdeu a esperança. Ainda vê o jornalismo como uma ferramenta de transformação social e acredita que um dia o Brasil será um país mais justo, embora ressalte que não estará mais aqui para ver.