
Conto proibído
Livros são artefatos perigosos em mãos desavisadas. Abrem portas de um novo mundo, subvertem pensamentos e impelem o ser humano a navegar por caminhos inquietantes. Contos, então, são perigosíssimos, não possuem o mínimo compromisso com a realidade e com o bom senso. Livremente estimulam a imaginação e os mais libidinosos provocam excitação ao mesmo tempo em que abrem as válvulas da emoção.
Por isso, não se pode condenar de supetão a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que proibiu, em decisão liminar, nova distribuição de exemplares do livro “Cem melhores contos brasileiros do século” a alunos da rede pública de ensino. Segundo a decisão, há contos no livro que evidenciam “elevado conteúdo sexual, com descrições de atos obscenos, erotismo e referências a incestos”.
O Judiciário atua como guardião da moralidade e dos bons costumes, que por sinal são fontes ancestrais do direito. Por natureza, os jornalistas defendem a liberdade de expressão com a devida ressalva em relação aos abusos. Pais zelosos têm o direito de orientar a educação dos filhos estudantes, que ainda estejam abaixo da linha da maturidade, embora seja muito difícil, até mesmo para os ilustres magistrados de um tribunal, precisarem, em anos, aonde termina a infância e aonde começa a adolescência.
O livro abominado tem mais de 600 páginas escritas pela fina flor dos literatos brasileiros: Graciliano Ramos, Machado de Assis, Érico Veríssimo ... No final, tem um texto com magistrais pitadas de erotismo escrito por Sérgio Sant´Anna. “Estranhos” conta a história de um homem e de uma mulher que vão ver, ao mesmo tempo, um apartamento para alugar. O zelador diz que não pode abandonar a portaria para mostrar o imóvel. Depois de examinar o concorrente e intimamente considerá-lo inofensivo, a mulher bonita e elegante toma a iniciativa e propõe que os dois pretendentes examinem o apartamento juntos, em um prédio velho com marcas de balas perdidas, chamado de Bois de Boulogue, próximo de uma favela do Rio de Janeiro.
O homem, um jornalista que estava noivo, procurava um apartamento para começar uma nova vida. No vai-e-vem da conversa, a mulher de 34 anos desatou a chorar inconformada. Seu companheiro a tinha trocado por uma mulher mais jovem de 18 anos. Para descrever as sensuais cenas do estranho casal vale uma transcrição literal: “Descrições de pormenores sexuais são deselegantes e enfadonhas ... mas creio poder revelar que gastamos duas camisinhas... Houve um momento em que cheguei a dizer, ternamente: — poderíamos morrer juntos.” Enquanto se recompunha, o personagem masculino conclui que o ato recém-cometido não era uma traição com sua noiva, mas significava que havia sido atropelado pelo destino.
Recolocando as roupas, a mulher decidiu voltar para o seu companheiro e propôs que eles descessem o elevador separados para não chamarem a atenção. O homem implorou para saber ao menos o seu nome, mas ela foi dura, inflexível, o que acabara de ocorrer não teve a menor importância. Bateu a porta e foi embora sem olhar para trás. O homem terminou o noivado, alugou o apartamento, mesmo com as marcas de balas perdidas. Escreveu um conto para um jornal em que trabalhava, mencionando o apartamento. No fundo, acalentava a fantasiosa esperança de que um dia a estranha e sedutora mulher voltasse para usá-lo novamente na vingança contra as traições do seu atual companheiro.