As cuspidas na democracia

As cuspidas na democracia

O cuspe em seu sentido figurado mais abominável deixa de ser um mecanismo de defesa do corpo para se transformar num ato de agressão. Na atual conjuntura política, a cusparada está substituindo o debate das ideias para virar uma arma de ataque ao pensamento oposto. No Brasil, tumultuado por graves acontecimentos políticos e econômicos, o combate aos argumentos divergentes envereda pelo perigoso caminho das agressões corriqueiras. Em vez de ganhar no grito, o pessoal quer ganhar na base da cuspida. No momento atual, o pensar diferente se encaixa no rótulo de “inimigo”, uma diferença capaz de provocar explosões de ódio, a cisão de casais e o racha irreparável entre amigos e familiares. Na versão on-line dessa onda de irracionalidade que toma conta do país, a chuva de cuspidas se equivale aos xingamentos nas redes sociais e nas discussões que descambam do salutar confronto político, do debate de ideias, para os ataques que se radicalizam até chegar à provocação, à ofensa e à agressão.

A mais solene cuspida, transmitida em rede nacional, veio de Jean Wyllys, vencedor de um BBB da Rede Globo, jornalista e professor universitário, eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro. No Congresso Nacional, Jean é uma referência por ser um defensor quase que solitário do movimento gay em um parlamento que possui vários expoentes da homofobia, o que confere ao seu mandato uma importância histórica na luta pelo fim da discriminação e pela igualdade dos direitos das minorias. O arqui-inimigo de Jean é o deputado direitista e provocador contumaz, Jair Bolsonaro, que agora deve ser processado por apologia à tortura realizada durante a votação do impeachment. No entrevero dessa sessão, depois de proferir o voto, Jean tomou uma atitude que não está à altura da representatividade que exerce e cuspiu em Bolsonaro no plenário da Câmara dos Deputados. Perdeu o decoro.

Atitudes grosseiras como essa se generalizam pelo país em partidas de futebol, em escolas e em restaurantes. A cuspida no Congresso ainda nem tinha secado e outra ganhou projeção nacional nas redes sociais. O ator da Rede Globo, José de Abreu, 70 anos, 50 de carreira, cuspiu em um casal num restaurante japonês de São Paulo. No vídeo que circulou na internet, o ator cuspiu duas vezes na mulher e uma no homem envolvido na discussão. José de Abreu esteve inclusive no Programa do Faustão, onde obteve um espaço generoso para dar a sua versão dos fatos. Se fosse um programa jornalístico, a versão do casal, mesmo que fosse gravada, também deveria ser exibida, mas a equidade de depoimentos não está entre as finalidades do Domingão.

Num entrevero, como dizem uruguaios e argentinos, fica difícil dizer de quem partiu a provocação inicial, contudo, as duas cuspidas das celebridades, de Jean Wyllys e de José de Abreu, foram gravadas e mereceram a repulsa da maior parte da opinião pública, sem que isso signifique presunção ou julgamento de culpa ou de inocência. Nas redes sociais, seguindo a tendência reinante, o episódio ganhou uma chamada estereotipada que bem retrata o rebaixamento cultural e político que predomina no momento. A divergência política e a convivência dos contrários estão prestes a se transformar em ocorrência policial. A manchete na Internet estampava “a cuspida do mortadela Rouanet José de Abreu no coxinha”. Apesar de o vídeo ter se tornado viral nas redes sociais, o ator não demonstrou nenhum arrependimento.

Nesse roldão circulou outro vídeo mostrando que a intolerância individual logo se transforma em coletiva. Em ato realizado em frente ao Museu de Artes de São Paulo (MASP), um grupo de manifestantes organizou um protesto bizarro e repugnante. Jovens universitários demonstravam certo júbilo em cuspir e vomitar em cima das fotos de políticos. Esse comportamento deselegante e deseducado foi reprovado pela maioria da opinião pública. Quem saiu em defesa dos cuspidores, pasmem, foi a ex-ministra dos Direitos Humanos e deputada federal, Maria do Rosário, que pelo jeito ignora o elementar princípio da reciprocidade, o de dispensar aos outros o mesmo tratamento que gostaria de receber. Salvo em legítima defesa, o ser humano não pode abrir mão de alguns requisitos que são inerentes à sua condição. A educação, a civilidade e o respeito são algumas delas que tornam possível a vida em sociedade. Não posso exigir de outros, aquilo que não faço. A banalização da cuspida e a sua aceitação significam um retrocesso em direção ao tempo das cavernas. 

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