“Desaconteceu”

“Desaconteceu”

Entre muitas palestras interessantes da Feira do Livro, uma que chamou a atenção foi a de Eliane Brum, a jornalista gaúcha que com o olhar arguto para a realidade urbana, reforçado pela sensibilidade feminina, já ganhou vários prêmios de jornalismo e de literatura. O jeito meio tímido da escritora logo desaparece com a empolgação suscitada por uma boa história. Quando a conversa flui, Eliane revela a predileção pela antítese do jornalismo convencional, gosta de apresentar fatos e personagens pelo avesso. Interessa-se por histórias e pessoas que aparentemente não têm os mínimos predicados para virar notícia. Pauta seu trabalho profissional pela obsessiva busca do extraordinário naquilo que, para olhos desatentos, parece o mais banal. Com a tenacidade típica dos bons contadores de história, persegue o neologismo que alimenta sua busca: “os desacontecimentos”. 

A essa altura da carreira se autodefine como uma “escutadeira de histórias”, que com o passar do tempo desenvolveu uma rara habilidade profissional. Com a presteza dos ouvidos treinados é capaz de desvendar o que há de interessante em vidas que, apesar das aparências simplórias, carregam as essências dos causos interessantes. 

Nos textos dos livros e nas colunas que publica no portal da revista Época, costuma tecer com palavras os pontos de convergência entre a literatura, o jornalismo e a cruel realidade das ruas. Para isso, subverte a lógica mais elementar do jornalismo. Com faro de garimpeira, procura o que há de extraordinário na vida comum de pessoas anônimas. Olha a existência humana de um ângulo diferente e consegue tirar lições de filosofia das simples ocorrências da vida. 

Para penetrar na clausura do leitor, o texto instigante levanta alguns mantos ainda obscuros para a maior parte das pessoas, como a dor da invisibilidade que aos poucos se transforma numa penosa angústia coletiva. Eliane refere-se à principal matéria-prima de seu trabalho de repórter investigadora de almas: as vidas que passam despercebidas, anônimas, diante de um mundo cada vez mais seduzido pela necessidade premente de obter destaque e reconhecimento. Que o diga a audiência do casamento do príncipe! 

Jornalistas costumam professar que não podem perder a capacidade de indignarem-se diante da injustiça, do descalabro e da corrupção que campeia solta hoje no país. Mais sutil, a jornalista procurou um sinônimo para definir a inquietação que carrega consigo. Trocou a indignação pela palavra espanto e critica o olhar domesticado, a docilidade perversa da complacência acomodada, o conformismo do resignado que a tudo assiste sempre do mesmo jeito, sem fazer força para mover a cabeça que está mergulhada no cotidiano cada vez mais trivial. Nessas incursões atentas que faz pelos descaminhos das almas humanas, mesmo daquelas que se encontram no mais combalido dos estados, a escritora pratica a humildade do que ouve com a reverência que o interlocutor merece. Com essa postura calcificada, consegue extrair de cada história o viés humano da vida, difícil de encontrar na avalanche de informações despejadas diariamente pela mídia. Sentada no chão de uma calçada aprendeu com um mendigo de Porto Alegre uma lição de vida. “Eliane, o mundo é bom, apenas é mau frequentado”. 

Quem gosta de ver a vida pelo ângulo do improvável e não tem medo do avesso, pode comprar os livros e ler as histórias contadas por Eliane Brum. Cada página contém uma reflexão inquietante, no entanto, seus escritos revelam que o mundo é ilusório e perigoso demais para quem quer passar pela vida sem coragem para se desfazer das certezas que sustentam a caminhada. 

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