
Desumanização e intolerância
A radicalização resulta na intolerância. Hoje, em cada canto do país tem um celular ou uma câmera gravando e, em poucas horas, as imagens dos conflitos “viralizam”. Isso provoca uma sensação um pouco exagerada de que a intolerância e a violência estão aumentando em proporções assustadoras. Na história, a intolerância sempre existiu e teve como endereço os campos de concentração e as câmeras de gás. A diferença é que agora existe uma enorme publicidade na Internet. A visibilidade, a controvérsia, a reprovação da opinião pública e a eventual punição possuem um caráter educativo, pois os infratores quase sempre são expostos de forma desconcertante com abalos irreparáveis para a própria imagem. Não é ingênuo supor que, na maioria das vezes, os agressivos captados pelas lentes das câmeras vão amargar arrependimentos e perdem o contexto da própria vida.
Nessa situação se encaixa, por exemplo, a torcedora do Internacional que empurrou a mãe adversária e a criança com a camiseta do Grêmio que ensaiavam uma pequena comemoração pelo empate no último Grenal realizado no Beira Rio em Porto Alegre. De acordo com os mandamentos da intolerância não se pode balançar a camisa em território adversário. Além da negativa exposição mundial, a atitude hostil da torcedora colorada foi reprovada pelo seu próprio clube. O calvário nas redes sociais e na mídia deve ter provocado um enorme arrependimento, sem contar a suspensão do quadro associativo do Inter e o inquérito policial para responder. Vexame semelhante ao que foi submetido a torcedora do Grêmio que, em agosto de 2014, proferiu uma ofensa racista ao goleiro Aranha que na época jogava no Santos. Dias depois, arrependida e chorando muito, a torcedora mal conseguiu pedir desculpas. Sua vida nunca mais foi a mesma.
O curioso é que quando esses atos de intolerância explícita acontecem os comentários nas redes sociais costumam ser piores do que o fato em si. A internet parece que cumpre uma função ainda pouco estudada: terreno livre e fértil para a destilação de ódio e injúrias. Psicólogos e cientistas sociais poderiam explicar melhor porque a intolerância está tão latente no ser humano nos dias de hoje. Basta ver o que aconteceu na morte do famoso jornalista Paulo Henrique Amorim no começo de julho. O jornalista da Record era um crítico do governo do presidente Jair Bolsonaro e a notícia de sua morte recebeu comentários agressivos, do tipo “já vai tarde”, “um petista a menos” e o “hoje tem festa no inferno”. Até pouco tempo, vigorava um protocolo de civilidade para com os mortos, diante da impossibilidade de defesa do destinatário das críticas. Parece que também morreu esse respeito que transcendia à questão partidária e política.
Também faltou uma dose de civilidade a uma parcela de moradores de Jaraguá do Sul (SC), quando organizadores da Feira do Livro local resolveram convidar a jornalista Miriam Leitão para ser uma das palestrantes, junto com o seu marido, Sérgio Abranches. Em tese, uma feira do livro deveria ser um espaço reservado para a pluralidade de ideias. Miriam tem postura crítica em relação ao atual governo, mas, recentemente, foi uma das maiores antagonistas do governo da ex-presidente Dilma Rousseff. Por contraditório que pareça, embora seja considerada uma das cidades mais seguras do país, com baixos índices de violência, os organizadores da Feira perceberam que não poderiam garantir a segurança de Miriam Leitão na “pacata” Jaraguá. Constrangidos tiveram que desconvidar a jornalista. Dias depois do anúncio do convite, uma enxurrada de ameaças contra os convidados circulou nas redes sociais. Uma petição on-line de repúdio contra Miriam Leitão por “seu viés ideológico e posicionamento” teve mais de 3 mil assinaturas. No caso de Jaraguá, a intolerância alcançou o ápice e descambou para a postura fascista que tenta intimidar ou eliminar quem pensa diferente.
Com as redes sociais, essas demonstrações de ódio e de intolerância tiveram seu grau ampliado. As manifestações mais visíveis são as declarações de ódio, desrespeito, extremismo, xenofobia e racismo. A novidade preocupante é que esse processo de desumanização ganhou respaldo institucional insuflado por patrulhas e grupos organizados que adotam uma postura intimidativa off e on-line. A discordância passou a ser considerada ofensa e ataque pessoal. É desse ambiente hostil que estão brotando todos esses conflitos escancarados pela mídia que causam espanto e muita preocupação com o futuro da convivência no país.