
Deuses do cotidiano
Os jornais que esquadrinham o cotidiano mostram que, apesar das garantias de igualdade asseguradas pela Constituição, a desigualdade e o tratamento discriminatório ainda reinam no país. Diante de serviços públicos e privados prestados com qualidade sofrível impera o salve-se quem puder. A arrogância e a prepotência formam uma coligação que se julga imbatível para exigir regalias. Numerosas parcelas de cidadãos se consideram diferenciados e, portanto, merecedores de alguns privilégios indisponíveis para os demais pobres mortais.
Os exemplos se multiplicam em diversas áreas e profissões. Felizmente, esse comportamento ainda não virou uma epidemia, o bom senso da maioria prevalece, embora os maus exemplos maculem a imagem das categorias. Alguns distintos cidadãos fazem questão ou exigem o tratamento de doutor, mesmo que tenham apenas concluído a faculdade de direito em uma instituição pouco recomendada. Lembrando que o indivíduo formado em primeiro grau, em qualquer curso universitário, recebe o título de bacharel. Essa regra vale para os formados em Publicidade e Propaganda, Administração, Economia, Contabilidade, Jornalismo, Direito e em muitos outros cursos. No meio acadêmico, encontram-se, com frequência, professores que derramam um extenso currículo na aula inicial, mas no decorrer do semestre apresentam um conteúdo medíocre, de pouca aplicação prática, recheado de teorias que nunca serão usadas.

Em algumas ocasiões, as fardas e os uniformes conferem ao cidadão o poder da autoridade, da intimidação. Os que não são cônscios das suas atribuições acabam abusando do poder no exercício das suas funções. O cidadão se sente órfão quando a solução de um problema esbarra na má vontade de um funcionário público. A área da comunicação está cheia de gente importante, jornalistas, apresentadores e artistas de TV. Muitos acham que integram um seleto time de estrelas com direito inclusive a entrarem sem pagar em eventos para os quais não foram convidados. Apesar das denúncias de assédio moral, nas empresas públicas e privadas, ainda não acabou o reinado do chefe que grita, xinga e humilha funcionários e servidores em público. Em boa parte dos lares brasileiros impera o regime patriarcal que discrimina os papeis de homens e de mulheres.
No trânsito, frequentemente, o cidadão que estacionou em local proibido ou que andava acima do limite de velocidade acha que o seu caso é especial e por isso tem direito à impunidade que tanto crítica nos outros. Para escapar de uma multa, vale-tudo, até tentar corromper o guarda.
Na semana passada, uma “carteirada” ganhou repercussão nacional com o desfecho jurídico do caso ocorrido, no Rio de Janeiro, em 2011. O processo judicial expôs o conflito entre uma cidadã comum (uma agente de trânsito) e um cidadão poderoso (um juiz de direito). Até Kafka ficaria intrigado com a ocorrência e a sentença do Tribunal de Justiça do Rio. O juiz foi parado numa blitz por dirigir um carro sem placa e sem a habilitação. Os autos do processo revelam que o magistrado desconhecia que não poderia trafegar com um veículo por mais de 15 dias sem placa. Identificando-se como juiz, queria que o seu carro fosse levado para uma delegacia e não ao pátio dos veículos apreendidos, como determina legislação.
Dá para imaginar o rumo que essa discussão tomou até o momento em que a agente Luciana Tamburini, que tentava aplicar a lei, disse que “ele era juiz, mas não era Deus”. O juiz Souza Correa considerou a afirmação um insulto e, por desacato à autoridade, deu ordem de prisão à agente de trânsito. O Tribunal entendeu que o juiz é mesmo Deus e condenou a agente de trânsito a indenizar o magistrado em R$ 5.000,00. Qualquer leigo pode concluir que não há ofensa na afirmação você não é Deus.
“Você sabe com quem está falando?” Ao optar por uma decisão corporativista, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro cometeu uma injustiça ao condenar a servidora que não cedeu à pressão por um tratamento diferenciado. Uma campanha na internet arrecadou o dinheiro para o pagamento da multa. Felizmente, esses comportamentos não são generalizados. A Corregedoria Nacional de Justiça não digeriu bem o episódio e o caso será reavaliado.
O caso ilustrativo reflete uma cultura que contamina a sociedade. Alguns cidadãos acreditam que, por causa de um diploma, de um cargo ou do dinheiro depositado no banco, encontram-se em posição superior, integram uma espécie de divindade com poderes especiais, acima da legislação. O princípio da igualdade, base do Estado moderno, remonta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, logo após a Revolução Francesa. Mais de 200 anos depois, nas ruas ainda vigoram os princípios da carteirada e do compadrio. Pela coragem em combater o privilégio de uma autoridade, a agente Luciana Tamburini não recebeu o título de doutora, mas ganhou com méritos o reconhecimento da opinião pública nacional.