
A devastação do bom senso
Exceto pelas conquistas do esporte e por algumas tragédias, talvez o Brasil nunca tenha chamado tanto a atenção do mundo como agora na questão que envolve a Amazônia. Numa sucessão de atropelos, de uma hora para outra, entramos em rota de colisão com os franceses e com os países mais ricos do mundo. Até então nossa maior diferença com a França estava restrita ao esporte. Somos o país do futebol, mas por três vezes, em 1986, 1998 e 2006, os admiráveis Platini, Zidane e seus comandados nos eliminaram de três copas do mundo. Antes da confusão sobre a preservação da floresta, Paris e a Torre Eiffel eram o destino preferido de milhares de brasileiros. No entanto, quando o fogo se apagar e a fumaça se dissipar no horizonte, tudo deverá continuar como antes. A Amazônia continuará fazendo parte do território brasileiro e a França com seus museus históricos, com seus cafés aconchegantes e a sua charmosa Champs-Élysées continuará sendo um dos destinos preferidos dos brasileiros, claro, que possuem euros para viajar.
Para nossa sorte, todos os governantes passam. Apesar das queimadas medievais e do desmatamento ilegal, a floresta sobreviverá, pois ela é muito grande para ser destruída em pouco tempo. Tem mais de 5 milhões de km², o que corresponde a mais de 50% do território nacional. Se fosse uma pequena extensão, as queimadas hoje não estariam no noticiário. Em tempo de clima seco, os últimos acontecimentos demonstraram que as relações internacionais e a floresta possuem alta combustão. De qualquer faísca brota um incêndio.
Se fossem sábios, os governantes já teriam aprendido que ninguém ganha com a guerra. A discussão sobre a devastação da Floresta Amazônica tornou-se um caso emblemático da histeria raivosa que tomou conta do país onde se misturam ideologias extremistas, distorções grosseiras da realidade, boataria, soberba, interesses econômicos, voluntarismo, negação da ciência e espírito beligerante. A teoria conspiratória de “que os gringos” querem colocar as mãos na Amazônia circula há tempos na internet, mas até então os vilões eram os americanos que chegaram até a elaborar mapas “suprimindo a Amazônia do território brasileiro”. Agora, os invasores da vez são os franceses, mesmo que até hoje não haja nenhum ato concreto nesse sentido.
A despeito de qualquer sentimento nacionalista, há que se reconhecer a secular incompetência do estado brasileiro para cuidar minimamente de um patrimônio ambiental que interessa ao planeta. A destruição da floresta só não remonta à chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil porque a Amazônia fica muito longe das praias onde os portugueses desembarcaram. De lá para cá, os sucessivos governos foram incapazes de zelar minimamente pela manutenção e a exploração sustentável da floresta. A primeira atitude mal planejada foi feita na época da ditadura em 1972. Os militares inauguraram a faraônica Transamazônica, uma rodovia inacabada que ficou abandonada por anos. Sem nenhum tipo de controle e fiscalização, a estrada abriu a primeira porteira para o comércio ilegal de madeira e da fauna, além da invasão das terras indígenas. Na história mais recente, governos do PSDB, do PT e do MDB pouco fizeram para impedir que o desmatamento avançasse, ora em ritmo mais acelerado, ora mais lento. A destruição da floresta nunca cessou.
Se é verdade que as queimadas e a devastação não começaram no governo atual, também é fato que o grupo que está no poder abandonou a Amazônica à própria sorte. Tratou a questão com desdém e indiferença sem fazer nenhum esforço para estancar devastação. O governo só se mexeu, mandou as forças armadas para tentar controlar os incêndios, quando se sentiu acuado pela opinião pública internacional. O Brasil, que já sediou a Eco-92 e que havia assinado os principais acordos ambientais do mundo, virou um vilão ambiental para muitos países.
Por ironia, coube ao maior produtor de soja do país, o ex-ministro Blairo Magi, alertar o governo que o desleixo ambiental poderia custar muito caro às exportações do agronegócio brasileiro. No meio dessa grande confusão ainda sobraram comentários machistas, grosserias diplomáticas com embaixador estrangeiro e a soberba “do não preciso do teu dinheiro”, mesmo que faltem recursos até para pagar as bolsas dos estudantes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Numa reunião em Brasília, governadores assumiram que os estados estão quebrados sem recursos para combater a destruição. Um prudente ditado popular avisa que quem brinca com fogo quase sempre acaba se queimando.