
Duelo de convictos
Há pouco tempo, um dos problemas brasileiros era a falta de participação política dos cidadãos, uma história que se acentuou no período pós 64 com a institucionalização da censura e a perseguição de lideranças, intelectuais e artistas que foram obrigados a trilhar o caminho do exílio. O interesse pela política ficava abaixo das telenovelas e das partidas de futebol. Com a ebulição das redes sociais, a situação rapidamente se inverteu. De uma hora para outra, em todos os segmentos sociais, brotaram cidadãos pouco afeitos ao debate e à troca de ideias, pois estão convictos de que fizeram a melhor escolha política. A posição fica cristalizada com a onda de vídeos repassados desde o primeiro turno da eleição e intensificada no segundo.
A análise da complexidade da política, que não se resume no a favor ou contra, apresenta algumas dificuldades para formar juízos. Dados do Tribunal Superior Eleitoral revelam que apenas 10% dos eleitores brasileiros são filiados a algum partido político. Entre esse contingente, uma esmagadora maioria possui uma filiação pró-forma, está vinculada à algum partido, mas não comparece às reuniões e nem contribui financeiramente. Quase a metade dos filiados não participa das convenções que escolhe os candidatos. Pouca gente lembra em qual candidato votou na eleição passada. Fora do período eleitoral, pouco se sabe sobre a atuação dos candidatos. Antes dessa eleição, só quem acompanhava a política muito de perto sabia quem era o cabo Daciolo (Patriota), João Goulart Filho (PPL) ou Guilherme Boulos (PSOL). Menos ainda conseguiriam vincular o candidato ao partido ou a um fato político. A mesma dificuldade em conhecer a atuação se aplica a candidatos mais conhecidos quando estão longe da disputa eleitoral. As campanhas que deveriam esclarecer propostas são cada vez mais curtas e pouco elucidativas. A propaganda gira em torno dos ataques e da desconstrução do adversário. O espaço propositivo fica restrito às frases de efeito do tipo “vou construir 1.000 creches, quitar todas as dívidas ou construir um milhão de casas populares”, sem explicitar como esses milagres serão operados. Os debates televisivos reúnem muitos candidatos e acontecem tarde da noite, quando a maioria do eleitorado já foi dormir. Quem já leu os planos de governo dos principais presidenciáveis e dos candidatos aos governos estaduais? Alguém recebeu os programas completos no WhatsApp? Quais serão os partidos e as pessoas que farão parte dos governos vencedores?
O esclarecimento complementar à propaganda oficial poderia ocorrer nas redes sociais, mas esses espaços estão minados pelas notícias falsas, montagens e distorções na qual a grande maioria dos candidatos aparece como vítima e algoz ao mesmo tempo. Neste curto período democrático, o eleitor brasileiro, paulista, fluminense e ribeirãopretano, para citar alguns, já possui uma respeitável coleção de enganos. Em 2012, a ex-prefeita Dárcy Vera ganhou em primeiro turno. No final de 2016, a metade da Câmara de Vereadores, eleita pelo voto, foi banida pela Justiça. Após duas gestões desastrosas dos ex-governadores Orestes Quércia e Luiz Antonio Fleury, o Estado de São Paulo quase quebrou. No Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que teve duas vitórias consagradoras para governador, está preso e condenado a mais de 100 anos de cadeia. Em 2010, ganhou a eleição no primeiro turno com 66% dos votos válidos. No plano federal, Fernando Collor foi eleito com uma votação avassaladora e depois apeado do poder em meio a uma onda de escândalos.
No estágio atual, a discussão política foi substituída pelo confronto de ideias, pelo embate inflexível de posições e pelo ponto de vista fechado que só aceita a adesão. Este clima de enfrentamento está produzindo tensão e rachas entre familiares, amigos e colegas de trabalho. Ao que indica, o clima de hostilidade deve prosseguir após a definição de vencidos e vencedores. A política é a arte da negociação, do equilíbrio, da busca pelo conhecimento e pela informação para formar o juízo fundamentado. Mesmo assim, a filosofia ensina que a verdade absoluta não existe, muda bastante à medida que o tempo passa e a partir do ângulo do observador. As ações estão sujeitas às circunstâncias, às oportunidades e às limitações materiais. O discurso do candidato difere do governante. O pensamento de Nietzche foi um dos que mais avançou para explicar que o oposto do ruim não é necessariamente o bom. O filósofo alemão não aceitava a concepção de verdade, porque não se pode alcançar uma certeza sobre a definição do oposto da mentira. Assim, para não confundir o entendimento, melhor seguir a linha de Santo Agostinho que sempre relativizava fatos e fenômenos.