
Falta pra cartão
Mais da metade dos brasileiros (53%) entendem que foi uma decisão equivocada sediar a Copa do Mundo. Essa percepção se baseia numa pesquisa da TNS Brasil, empresa global de pesquisa de mercado e opinião, que entrevistou 968 pessoas em nove capitais entre maio e junho. Claro que a respeito de uma questão tão polêmica, que mistura paixão e racionalidade, futebol e política, o resultado da pesquisa serve como indicativo, mas não encerra a discussão que monopoliza a atenção do povo brasileiro.
Estamos jogando em casa com duas copas para assistir. A primeira, deslumbrante, é a oficial, que encanta e acontece dentro de magníficos estádios com a transmissão ao vivo de todos os detalhes. A outra, mais envergonhada, não tem tanto glamour, pois envolve as manifestações, o pau que quebra nas ruas, tem atraso e superfaturamento de obras. A gastança na construção e na reforma de estádios foi pluripartidária, pois envolveu, entre outros, governadores do PSDB, PT e PSB em Minas, São Paulo, Bahia e Pernambuco. Quando o ex-presidente Lula tomou a maquiavélica decisão de trazer a Copa para o Brasil, estava circundado por uma penca de governadores.
Mesmo com essas contradições, a realização da Copa no Brasil deixará um legado positivo como mostra essa pesquisa. Não serão as inacabadas obras de infraestrutura, mas a consciência de que os megaeventos são ótimos negócios para os organizadores, no caso brasileiro, a FIFA, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e as grandes empreiteiras. Não é à toa que a entidade que comanda o futebol mundial escolhe para sediar seus eventos países em que a corrupção encontra campos férteis, casos da África do Sul (2010), Brasil (2014) e a Rússia (2018), conhecida como um dos países mais corruptos do mundo. O Qatar, sede de 2022, já está sob suspeita, pois começou bem, corrompendo os delegados que participaram da escolha.Não se pode entregar a organização de um evento desse porte, que envolve quantias bilionárias, para pessoas sem idoneidade moral. O torcedor brasileiro, apaixonado pelo futebol, ainda não se atentou para o fato que, desde 1989, elege o presidente da República, mas que coincidentemente, desde a mesma data, assistiu de camarote Ricardo Teixeira dirigir a CBF por longos 23 anos até fugir para os Estados Unidos.
Sem uma reforma estrutural, o futebol brasileiro vem perdendo força e projeção internacional, embora isso não signifique que não possa ganhar a Copa. Até a identidade do povo com a Seleção, vínculo marcante de outras conquistas, não será a mesma. Milhões de brasileiros que vão assistir aos jogos certamente não conhecem o Luis Gustavo, o volante titular da Seleção Brasileira, natural de Pindamonhangaba, revelado pelo Corinthians de Alagoas e exportado precocemente para o futebol alemão. Em que times jogou e joga o Maxwell , o conterrâneo do cantor Roberto Carlos, de Cachoeiro de Itapemirim? Entre os 11 titulares, só o centroavante Fred veste a camisa de um time brasileiro. O Brasil virou um grande exportador de “pés de obra”, é a sétima economia do mundo, mas perde jogadores até para a Ucrânia, país dilacerado por uma guerra civil, onde joga o Bernard, o reserva do Neymar.
Ao contrário do que ocorre em outras áreas da vida nacional, a mídia, principalmente as TVs abertas, fazem uma cobertura superficial e inconsequente do futebol. Globo e Bandeirantes denunciam os problemas da saúde ou da educação, mas ficam no oba-oba nas reportagens esportivas. O ônibus da Seleção passou por aqui, o jogador que segura o menininho no colo e o festival de embaixadas. Com overdose de entradas ao vivo, dirigentes, treinadores e a maioria da imprensa esportiva fazem o jogo do compadrio. Vejam o comportamento do matreiro Felipão, que conhece bem essa cumbuca. Logo que chegou à Granja Comary tratou de atender bem a quem comanda o espetáculo e é “sócia” do evento. Enquanto a legião de jornalistas ficava atrás do cordão de isolamento, o técnico da Seleção deu uma entrevista exclusiva para a Fátima Bernardes, foi na bancada do Jornal Nacional e gravou uma participação especial no programa do Luciano Huck. Deve ter faltado tempo para ir ao Mais Você ensinar a Ana Maria Braga e o Louro José a fazerem uma chimia.
Nos últimos tempos, o que de melhor ocorreu no futebol brasileiro foi o Bom Senso Futebol Clube, o movimento dos jogadores profissionais que denunciou as precárias condições de trabalho da grande maioria dos atletas brasileiros. Quando os campeonatos regionais acabam, na metade do primeiro semestre, mais de 12 mil atletas ficam sem emprego e, na maioria das vezes, não recebem os direitos trabalhistas. Historicamente, a política sempre tentou estender os tentáculos sobre o futebol. É por isso que não se pode misturar o resultado do jogo com o resultado da eleição. Para isso, o torcedor pode se deixar levar pela emoção da vitória, mas tem que usar a razão para entender a especificidade única desta conjuntura do país. A regra é clara. Embarcar com tudo na ficção e na fantasia oficial propostas pelo governo e por parte da mídia é falta grave, pra cartão vermelho.