
Fora do quadrado
Já faz um certo tempo que a realidade brasileira se transformou num misto de esperança e de decepção, de euforia e tristeza, de revolta e de conformismo. As mídias digitais e a internet misturaram os universos. As demandas pessoais, familiares, profissionais, políticas e econômicas, para citar apenas algumas, agora estão mescladas num grande caldeirão que, literalmente, ferve todos os dias, de segunda a domingo. Por isso, existe um número cada vez maior de pessoas estressadas com dificuldades para dormir, sofrendo com a ansiedade e desanimadas para levantar da cama no começo de cada dia. As reações são as mais diversas. Enquanto uns buscam as saídas nas farmácias e nos consultórios, outros correm atrás de terapias e de experiências alternativas. Essas respostas controversas criam um mundo meio bipolar. Ora a pessoa vai à luta para tentar mudar tudo, ora cai em prostração, fica resignada, restrita ao seu particularíssimo universo, cuidando somente daquelas atividades que podem trazer alegria, satisfação pessoal e a fugaz sensação de felicidade.
Desde fevereiro, a Revide está de cara nova, pois se reinventar no mundo de hoje é uma necessidade difícil, mas que precisa ser enfrentada. Além da mudança na diagramação e na tipologia, novos conteúdos foram inseridos na edição. Apesar da limitação dos prazos de fechamento de uma revista semanal, a pauta da Revide tenta acompanhar de perto as velozes notícias da vida contemporânea, onde da manhã à noite a realidade vira várias vezes de ponta cabeça. Em um papel jornal diferenciado, a principal mudança está no caderno cotidiano que dá ênfase às notícias do dia a dia da cidade, abordando política, problemas urbanos e os temas especiais. Uma das novidades foi a seção “Em memória” que divulga o obituário da semana. Embora a morte não seja um assunto muito agradável, ela sempre desperta muita curiosidade.
Se uma parte dos leitores demora um pouco para perceber as mudanças devido à correria do dia a dia, outros são mais atentos e percebem as novidades logo de cara. Foi o que aconteceu com o dentista da rede municipal, Pedro Bistane, que viu na nova editoria uma oportunidade para ajudar a resolver um antigo problema público de saúde. Uma das dificuldades que a Rede Municipal enfrenta são as ausências de pessoas que marcam consultas, mas que não aparecem no dia do exame. Isso ocorre em especialidades que possuem muita procura, casos da cardiologia, ultrassonografia, urologia e pneumologia. Ao contrário de outras pessoas que limitam a sua atuação ao próprio quadrado, o dentista Pedro não se conformava de ver tantas ausências nas consultas ao mesmo em que muitas pessoas tinham enormes dificuldades para agendar um exame em uma especialidade mais concorrida. Frequentemente, o profissional se deparava na Unidade Básica de Saúde (UBS) com pessoas desesperadas tentando agendar um exame de urgência, sem que houvesse vaga para uma data próxima. Uma mulher com gravidez de risco, por exemplo, precisa urgentemente de um ultrassom e não pode esperar muito tempo pela consulta.
Por conta própria, o dentista resolveu verificar se entre os óbitos publicados semanalmente pela Revide não havia alguns com consulta marcada na rede pública municipal. Fez uma grande descoberta que tem lógica. Tem maior probabilidade de morrer quem está doente e quem está com alguma enfermidade, na maioria das vezes, recorre à Rede Pública. Semanalmente, encontrou várias pessoas falecidas com agendas marcadas, algumas tinham até três ou quatro consultas em especialidades diferentes. O dentista não pode cancelar as consultas das pessoas que morreram, mas entra no agendamento e anota a observação de que o paciente faleceu. Faz uma cópia do agendamento na tela do sistema e cola no e-mail dos gerentes das Unidades Básicas de Saúde. Assim, mensalmente, conseguiu abrir várias vagas e aliviar o trabalho da central de regulação. Dias desses, aconteceu algo engraçado. Um colega que não conhece, de um posto distante, ligou perguntando se “fulano de tal” tinha morrido. Ele pegou as listas da revista, deu uma pesquisada e não encontrou nada. Respondeu que não sabia e questionou por que estava perguntando isso para ele. O colega respondeu: “Você não é o cara que sabe de todos os mortos da cidade?” Pedro pertence a um notável grupo de brasileiros, gente que apesar das dificuldades, não recua e tenta todos os dias melhorar o país e a cidade onde mora. Não se contenta em ficar só reclamando dos governantes. O dentista tem ânimo suficiente para sair do próprio quadrado, para tentar mudar a realidade e ajudar a quem precisa. São pessoas com esse desprendimento que fazem a diferença. Hoje, o Brasil precisa muito de gente com esse espírito inconformado.