Fronteiras da intolerância

Fronteiras da intolerância

No começo de setembro, o mundo ficou chocado quando o garoto sírio, Aylan Kurdi, de três anos, apareceu morto em uma praia da Turquia. De tão inocente, o menino parecia um anjo dormindo. Menos de uma semana depois, a humanidade levaria outra rasteira. Contrariando um dos princípios da sua profissão — conscientizar o mundo com imagens — uma cinegrafista húngara, Petra Lazlo, numa extremada atitude xenofóbica, passou um rapa no menino sírio, Zaid Abdul, de 7 anos, que nos braços do pai tentava passar pela Hungria para chegar à Alemanha. Foi mais uma cena impactante que comoveu o mundo para o drama dos refugiados. Mais alguns dias, o semblante do garoto apavorado pela rasteira ressurgiu transfigurado, esbanjando sorrisos de alegria e de felicidade. De mãos dadas com um dos maiores jogadores da atualidade, o português Cristiano Ronaldo, que vestia uma camisa em solidariedade aos refugiados, Zaid entrou saltitante no suntuoso estádio do Real Madrid e foi aplaudido por 80 mil pessoas.

Nos modernos tempos das tragédias, poucas histórias têm um final feliz. Depois dessa epopeia toda, Zaid ganhou uma vaga na escolinha do Getafe, clube espanhol da primeira divisão, e poderá se tornar jogador de futebol. Além de realizar o sonho do garoto, o Real Madrid doou R$ 4,5 milhões à causa dos refugiados, o mesmo valor já havia sido doado pelo poderoso Bayern de Munique da Alemanha, país que ostenta a liderança mundial no futebol e na economia. Parece que os alemães são o grande caso de transformação moral nesse mundo em crise, cada vez mais violento, segregado e aterrorizado. O país que tentou exterminar os judeus há 70 anos, hoje, tomou à frente da solidariedade internacional e se organiza para receber um milhão de refugiados com um atendimento generoso e qualificado.

Há quem diga que a solidariedade alemã e dos principais países europeus não passa de hipocrisia, de mea-culpa dos grandes vilões do colonialismo mundial. Esses países se tornaram potências mundiais sugando a riqueza dos colonizados. Os barcos apinhados de imigrantes que agora cruzam os mares são uma espécie de ajuste de contas, um boleto histórico que cobra dos imperialistas a fatura de séculos de exploração econômica. Esse inesperado movimento migratório bagunçou a geopolítica. A massiva movimentação dos refugiados, dispostos a abandonar as suas terras para salvar a própria vida, ameaça o equilíbrio mundial. A onda de refugiados também colocou a diplomacia internacional em xeque e tirou a máscara das nações “solidárias”. Sem campanha de arrecadação de donativos, a Hungria e outros países da Europa se apressam em construir muros e cercas de arame farpado.

Daqui para frente, as abstratas fronteiras do comportamento demarcam a segregação ou o acolhimento. As linhas do território nacional deixam de ser determinantes. Os limites que mapearão as relações humanas dividem ricos e pobres, alimentados e famintos, beligerantes e pacíficos, cristãos e muçulmanos, moradores do centro e da periferia, da zona sul e da zona norte, com terra e sem-terra, terroristas e civilizados, solidários ou individualistas.

Os continentais bolsões de violência e de miséria colocaram o mundo em ebulição, um aquecimento global perigoso que elevou a convivência mundial para níveis preocupantes, abrindo a porta para uma infinidade de conflitos. A desigualdade se apresenta como a grande barreira do mundo, desafiando os limites cartográficos e da geopolítica. A bipolaridade da hipocrisia e da solidariedade são os extremos desse miscigenado conflito mundial. Em países como o Brasil, essa ruptura se torna visível nos confrontos diários entre as classes de maior poder aquisitivo e os desprovidos da periferia. Quem nasceu no lado “desafortunado” da fronteira está se rebelando, na maioria dos casos, movido pela fúria inconsequente dos que não têm nada a perder. O mundo precisa descobrir urgentemente um novo arranjo para que a desigualdade não perpetue a miséria. Caso contrário, crianças afogadas no mar e adultos prensados em muros e em cercas de arame farpado serão cenas corriqueiras do noticiário da TV.

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