
A genealogia esquecida
Quando se digita o nome Darcy no Google o primeiro sobrenome que aparece na tela é o Ribeiro, o que já revela a importância do antropólogo e escritor que ficou internacionalmente conhecido por seus estudos em relação aos índios e à educação no país. Darcy Ribeiro não era um intelectual neutro. Sem receio das críticas, tomava partido e seus trabalhos influenciaram uma geração de pesquisadores latino-americanos, analisando o mundo, não sob a ótica dos colonizadores, mas dos colonizados. Como vice-governador de Leonel Brizola no Rio de Janeiro (1983 a 1987), implantou os Centros Integrados de Ensino Público, os famosos e polêmicos CIEPs, um projeto pedagógico visionário que incluía atividades recreativas culturais, além do ensino formal, em tempo integral. Trinta anos depois, esta é uma meta que milhares de prefeituras pelo país inteiro ainda não conseguiram implantar na totalidade.
No Brasil de outrora, quem pensava muito e se envolvia com política, corria o sério risco de ser preso, torturado e morto. Para não cair numa cilada, a saída era o exílio. Após o golpe de 64, Darcy foi morar no Uruguai e em outros países da América Latina. Apesar da perseguição, um valioso legado ficou nos livros que escreveu. “As Américas e A Civilização” e “O Processo Civilizatório” são alguns dos livros que investigam o caldo cultural que se formou a partir da miscigenação do índio, do branco e do negro. O último livro talvez tenha sido o mais importante “O Povo Brasileiro — A Formação e o Sentido do Brasil”, obra que quase não concluiu por causa de um câncer.
Como bem escreveu o autor, o livro objetiva ajudar as pessoas e o Brasil a conhecerem a si mesmos, uma tarefa difícil, pois até 1500 só os índios habitavam essas terras. Em cada página, o antropólogo destrincha a sociedade e a cultura brasileiras, adotando como linha de investigação uma variante da colonização portuguesa mesclada com as características dos índios americanos e dos negros africanos. A obra da categoria clássica revela-se pela sua contribuição para a interpretação do momento atual, apesar do longo tempo decorrido.
Num segundo capítulo contundente, o antropólogo descreve com riqueza de detalhes o confronto fatal ocorrido na história entre a “selvageria” dos habitantes locais e a “civilização” do imigrante europeu. As belas praias descobertas por Cabral assistiram a um massacre sem precedentes escudado pela inabalável fé cristã. A matança até mesmo de índios, mulheres e crianças se justificava em nome da purificação da etnia pagã. Muito “en passant”, o ensino da história das escolas menciona vagamente o triunvirato dos mamelucos, cafuzos e mulatos para dar uma explicação sucinta sobre a nossa origem. Não raro, as três etnias resultantes são apresentadas em pé de igualdade. Poucas páginas registram com detalhes a escravidão e o verdadeiro massacre das duas raças historicamente subjugadas, negros e índios.
Darcy Ribeiro explicita que antes da chegada dos colonizadores, a vida dos índios era algo próximo do que se imagina como paraíso cercado por belezas naturais. De cara, ficaram espantados com a obsessão dos invasores em acumular riquezas, muito além da própria necessidade. O escritor descreve a ideologia dos jesuítas concebida pelo padre Manoel da Nóbrega como uma somatória de violência mortal, intolerância, prepotência e ganância. Sem nenhum escrúpulo, os índios foram escravizados, dizimados por doenças transmitidas pelo homem branco contra as quais não tinham imunidade. “No ventre das índias foi engendrado uma vasta prole mestiça, que viria a ser, depois, o grosso da gente da terra: os brasileiros.” A doutrinação religiosa para converter o povo pagão serviu como justificativa para atos de barbárie. Os que não aceitavam a conversão religiosa eram mortos ou escravizados.
Mesmo que 500 anos tenham se passado, este relato ficou perdido nos recantos da história. Lá nos anos 90, Renato Russo alertava que os índios poderiam ser “vendidos num leilão”. Se no Brasil de Cabral, os nativos eram considerados preguiçosos e não queriam trabalhar para o homem branco, hoje, pelo discurso oficial, se tornaram uma grave ameaça à soberania nacional. Os eventuais conflitos de interesse na demarcação e na exploração das terras dos nossos ancestrais podem ser resolvidos pela mediação sem o zumbido das balas. A morte recente ainda sem explicação do índio Emyra Waiãpi, no Amapá, precisa de uma investigação, sob pena do crime fazer parte da mesma lógica dos conquistadores portugueses. Ao contrário do que sugere a política governamental, os índios não são nossos inimigos. Por incrível que pareça, seu sangue corre nas nossas veias. Quem tiver alguma dúvida basta dar uma lida no “Povo Brasileiro” do genial e também esquecido Darcy Ribeiro.