Insatisfação explícita

Insatisfação explícita

As manifestações convocadas pela internet são uma novidade, uma grande incógnita sobre a capacidade de mobilização de uma sociedade e uma nova forma de expressão política. Ninguém sabe ao certo quantas pessoas de fato atenderão a um chamado virtual. Nos dias que antecedem um protesto, muita gente se manifesta nas redes sociais anunciando que vai, mas na hora “H” não aparece. Outros tantos comparecem ser fazer alarde. Será um protesto com uma centena de gatos pingados ou uma manifestação com milhares de pessoas? Antigamente, lá nos anos 60, 70, 80 e até 90 eram os partidos políticos, empunhando megafones, que conduziam essas manifestações junto com entidades populares e sindicais. No modelo atual, com poderosos carros de som e as imagens aéreas captadas por drone, os políticos, quando comparecem, são discretos e se misturam no meio da horda de cidadãos comuns. A histórica passeata de Ribeirão Preto, no dia 15 de março, seguiu a essa nova dinâmica das manifestações sociais. Embora tenha havido uma organização prévia, o comparecimento massivo ocorreu espontaneamente. Foi um grito de desabafo diante do descalabro político e econômico.

Quem se aproximava da Praça Carlos Gomes no horário marcado, percebia algo diferente no ar. A cada virada de esquina, nas imediações da mobilização, o número de pessoas ia aumentando. Sozinhas, acompanhadas, em grupos familiares ou de amigos, essas pequenas multidões coloriram as ruas, quebrando aquela monotonia típica de um domingo pela manhã. Diferenças sutis distinguiam os cidadãos que participaram do protesto dos que ficaram alheios à mobilização. Na grande maioria, os que protestaram estavam vestidos com as cores da bandeira: o azul, o branco, o amarelo e o verde. Os demais seguiam a sua rotina um tanto surpresos com aquela inesperada movimentação.

Por mais inusitado que pareça, na concentração, não havia uma única bandeira de partido político ou de entidade sindical. Os refrões do carro de som não eram puxados por um político. As milhares de faixas e de cartazes não traziam aquelas conhecidas palavras de ordem, mas eram criações autônomas, irônicas, de cidadãos descontentes com a safadeza política, com a corrupção ilimitada e com o aumento das tarifas públicas. Em outros tempos, algumas dessas bandeiras de protesto seriam impensáveis. “Obrigado Polícia Federal” dizia um cartaz. Outro agradecia a Polícia Militar, que durante toda a mobilização foi extremamente solícita e eficiente para bloquear o trânsito e garantir a segurança da passeata. As mensagens bem-humoradas faziam uma alusão direta ao desanimador noticiário político: “Eu não sabia”, “Queremos a punição do chefe”, “Nunca na história deste país houve tanta roubalheira” e o “Único acordo com corrupto é a cadeia”.

A participação dos ribeirãopretanos foi exemplar, uma das maiores ocorridas no país. O protesto civilizado superou ao de muitas capitais e registrou uma das maiores concentrações do interior do Estado. Teve mais gente protestando em Ribeirão Preto do que em Campinas. Com o apoio de um helicóptero, a Polícia Militar calculou em 35 mil pessoas o número de manifestantes. Foi um movimento vitorioso do ponto de vista quantitativo e qualitativo. Bem organizada e pacífica, a passeata ocorreu em um clima descontraído, familiar, sem o registro de nenhum incidente.

Alvo principal das manifestações, a presidente Dilma Rousseff foi eleita legitimamente e até o presente momento, considerando o dia 1º de janeiro de 2015, não há nenhum motivo concreto para a interrupção do seu mandato. A Constituição Brasileira não estabelece que a mediocridade e a traição eleitoral sejam motivos para o impedimento de um governante, mas ao contrário do que ocorreu em junho de 2013, agora é o governo federal que está no centro dos protestos, precisando se livrar da pecha de estelionatário eleitoral. Não se pode restringir esse debate a uma disputa partidária entre o PT e o PSDB ou outros partidos. O antagonismo explícito está entre o governo e a oposição. O Partido dos Trabalhadores já viveu essa experiência do lado oposto. Num passado recente, o PT puxou o coro dos descontentes com o “fora Sarney”, o “fora Collor” e o “fora FHC”. Agora, por ironia do destino, enfrenta enormes dificuldades internas e externas para digerir o “fora Lula” e o “fora Dilma”.

O recado do descontentamento foi dado pela população de forma democrática, ampla e contundente. Menosprezar o protesto como fizeram os dois ministros do governo Dilma, no balanço da manifestação, revela que a postura equivocada não mudou. Permanece a inflexão. Entre os manifestantes do domingo, havia muita gente que faz uma oposição raivosa e que deseja um terceiro turno da eleição, mas também estava lá o cidadão apartidário que cansou de ver o país ser saqueado. Também se manifestaram os cidadãos que votaram na presidente e que acreditaram que o “tarifaço” não ocorreria. Mesmo com os interesses tão distintos, esses protestos são legítimos como bem avaliou o equilibrado ex-ministro do Supremo Tribunal Federal. “Embora não haja justificativa para o impeachment, o fora Dilma é legítimo do ponto de vista da manifestação popular”, comentou Ayres Britto.

Com a economia estagnada, o governo está acuado e dá sinais de fraqueza sem respaldo político e econômico. Mostra-se incapaz de mudar os rumos e construir uma agenda positiva para o país. A cantilena do discurso oficial não muda. Certamente não foi o Partido dos Trabalhadores que inventou a corrupção no país, mas foi o PT que instituiu a propina na Petrobras. É verdadeiro dizer que nunca se investigou tanto, mas isso não serve de justificativa para uma falcatrua bilionária.

Depois de duas horas, a passeata em Ribeirão Preto teve um encerramento bastante emblemático e significativo no encontro das avenidas 9 de Julho, Independência e Presidente Getúlio Vargas. A 9 de Julho simboliza o espírito maior do senso revolucionário paulista. Cruza com o inimigo da Revolução de 1932, o ditador e ex-presidente Getúlio Vargas. A caminhada pela verdadeira independência política dá o formato desta encruzilhada em que o país está mergulhado. Justamente ali, nas avenidas em que Ribeirão Preto pulsa, nesse entroncamento com raízes no passado, os manifestantes cantaram os hinos, o da Independência e o Nacional. Ambos possuem letras muitas antigas que misturam os sentimentos antigos de amor à pátria com a indignação atual contra os desmandos e a corrupção.

A passeata se dispersou por ali, mas a caminhada pelo resgate da dignidade da nação terá de ir bem mais longe. Ao contrário do que diz o Hino da Independência, não será necessário morrer para ver a pátria livre da instrumentalização política estabelecida pelas elites que se apropriaram do Estado. Se o grito do Ipiranga foi obra do acaso, o grito do povo nas ruas terá de ser bem mais organizado e forte para não se esgotar numa mera faxina dos corruptos da vez. O brado retumbante do povo heroico precisa ir além para demolir os alicerces da corrupção que estão fazendo o país ruir. Não haverá independência de fato, enquanto as políticas de estado não estiverem voltadas ao atendimento das demandas da maioria. O movimento que acaba de ganhar as ruas precisa caminhar pensando nessa perspectiva. A tarefa de construção do Estado de direito, digno e soberano, transcende o mero afastamento de governos corruptos e incompetentes.

No mesmo final de semana em que milhões de brasileiros protestavam nas ruas, 50 pessoas morreram em um acidente de ônibus em Santa Catarina. O jornal americano New York Times divulgou que a tragédia foi provocada pela precariedade das estradas brasileiras, pela fala de fiscalização sobre o ônibus que transportava pessoas irregularmente e pela exploração do trabalho do motorista que dirigia há varias horas sem dormir. A priori, o debate político sobre a organização do Estado parece algo abstrato, mas no fundo serve para determinar a vida ou a morte, o presente e o futuro de uma sociedade. Governos não são como seres humanos, não fazem terapia e raramente examinam a própria consciência para reconhecer erros e fazer a mea culpa em público. Nesse ponto todos os governos são iguais. Só reagem sob forte e intensa pressão. É por isso que o Movimento Brasil Livre (MBL) e outras entidades fazem muito bem ao prepararem uma nova manifestação para abril.

Foto: Guilherme Bordini

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