
Jogo limpo
Até agora a Copa do Mundo foi marcada pelo equilíbrio entre as seleções. O que o mundo ainda não conseguiu na economia ou nos indicadores sociais — a redução das diferenças entre nações prósperas e subdesenvolvidas — o futebol alcançou com a paridade de forças entre as antigas potências do esporte e as seleções emergentes. O próprio Brasil foi um dos primeiros a sentir na pele essa mudança “geoesportiva” ao ver a sua eterna condição de “favorito” ser contestada de forma dramática logo na primeira fase pela subestimada Suíça e pela desconsiderada “Costa Rica”.
Os alemães, atuais campeões do mundo, foram surpreendidos pela correria do México e a Croácia atropelou os argentinos. Uma das maiores surpresas foi a Islândia, um país de 330 mil habitantes, sem tradição no futebol, que teve uma participação surpreendente. Portugal, com o melhor jogador do mundo, empatou com o Irã e a Espanha cheia de craques não conseguiu ganhar do Marrocos. Em um mundo globalizado, as razões desse equilíbrio são visíveis. Hoje, as informações e o conhecimento são acessíveis a todos. Até mesmo um país distante, fora da órbita das principais competições mundiais, usufrui de tecnologias que melhoram o desempenho de seus atletas. Com a abundância de informações, não existem mais segredos. Antes da cobrança do pênalti, o goleiro já sabe qual é o canto preferido do batedor. Foi assim que o goleiro do Irã pegou o pênalti do Cristiano Ronaldo. Mesmo que não tenha a tradição das grandes potências, a preparação com afinco por alguns anos eleva o nível de competição de um atleta e possibilita a formação de seleções bem preparadas, que não são batidas com facilidade.
Se o esporte é uma face importante do mundo atual, um raro momento de convivência pacífica entre os povos, a humanidade poderia aproveitar a Copa da Rússia para extrair algumas lições. A FIFA se orgulha de possuir mais filiados que a Organização das Nações Unidas (207 a 196). Atingida por escândalos de corrupção, a maior entidade do futebol tenta por fim às gestões fraudulentas que culminaram com o afastamento de vários dirigentes, muitos deles brasileiros. Uma evolução foi a introdução do árbitro de vídeo a partir deste mundial. A justiça começa a prevalecer quando são eliminados os erros, sejam eles intencionais ou não. O uso da tecnologia para esclarecer lances duvidosos aumenta a possibilidade de que o resultado seja justo, embora ainda possam acontecer erros de interpretação. Quando esta tecnologia estiver consolidada, erros históricos como o famoso gol com a mão de Maradona serão raridades. As câmeras espalhadas por todos os cantos do estádio também coibem atos de agressão e de indisciplina de jogadores, torcedores e dirigentes.
Fora de campo, também há uma pressão da opinião pública mundial em favor da tolerância, do respeito às diferenças e da prevalência da ética no esporte. Alguns torcedores brasileiros que estavam na Rússia, dispostos a “zoar” a qualquer preço, descobriram de um jeito amargo que o respeito ao próximo deve prevalecer, mesmo que seja em um distante país estrangeiro a milhares de quilômetros. Alguns perderam seus empregos, sofreram críticas nas redes sociais e ainda serão processados. No mundo inteiro, uma parte dos torcedores costuma praticar a homofobia quando o goleiro adversário vai bater o tiro de meta. Essa manifestação preconceituosa também entrou para a lista de comportamentos condenáveis.
Independentemente de quem seja o novo campeão, a Copa do Mundo deixa uma lição de que a convivência pacífica e respeitosa entre os povos do mundo é uma possibilidade real, desde que seja regida por códigos de ética e de comportamento. No esporte, essa conduta baseada nos pré-requisitos justos para competir em condições de igualdade se denomina “fair play” ou jogo limpo. Para que o comportamento a ser alcançado não fique restrito a subjetividade de cada um, existem regras que precisam ser fiscalizadas. Isso não significa a utopia da perfeição, de um mundo livre de distorções, de preconceitos e de desigualdades econômicas, mas demonstra que a convivência civilizada pode transcender os campos de futebol e melhorar a convivência entre os povos. Nessa transformação, todos os atos individuais, dentro e fora do campo, contam muito.