Jogos contraditórios

Jogos contraditórios

Dois assuntos monopolizam a atenção mundial neste momento: as olimpíadas e o terrorismo. Mesmo que sejam antagônicos, ambos estão entrelaçados pela contradição que mistura a euforia e o medo. Depois do atentanto de Nice, na França, a probabilidade de ocorrer algo semelhante nos jogos do Rio de Janeiro aumentou consideravelmente. Acertadamente as autoridades brasileiras intensificaram as normas de segurança, mas não existe nada pior do que lutar contra um inimigo oculto, sem rosto, que pode escolher a hora e o lugar para atacar. Mais do que o número de vítimas em cada atentado, as organizações terroristas buscam a espetacularização da barbárie. Assim, a Olimpíada vira o alvo ideal, pois ganha da Copa do Mundo em audiência e em atenção da opinião pública mundial. Cerca de 10 mil atletas de 206 países estarão competindo no Rio de Janeiro. Se as argolas entrelaçadas representam a tentativa de estabelecer a fraternidade entre os povos, o fuzil carregado pelo militante com rosto encoberto significa a tentativa de impor, mundialmente, pela força, a ideologia de uma religião. 

A paz e a fraternidade são apelos comoventes, mas na prática não encontram muita ressonância na geopolítica mundial do Século XXI. Apesar dos poéticos apelos, no século passado, de John Lennon, de Martin Luther King, de Dalai Lama, de Mahatma Gandhi e de Nelson Mandela, o mundo está mais na vibe de Saddam Hussein, Muammar Kadaffi e Baby Doc. Nem o iluminismo francês, agora perseguido pelo terror, conseguiu humanizar o mundo suficientemente. A era contemporânea escancara as garras do nacionalismo, do isolacionismo, do racismo, da intolerância, da beligerância e da xenofobia. Em vez de retirar os arames farpados das fronteiras, as nações erguem muros cada vez mais altos. Para espanto da opinião pública mundial, os cidadãos republicanos dos Estados Unidos escolheram para concorrer à presidência um candidato que promete incendiar a convivência além das fronterias. Entre muitas barbaridades, Donald Trump pretende construir um muro entre os Estados Unidos e o México e ainda diz que vai fazer os mexicanos pagarem a conta. Outrora, muita gente achou que Hitler não iria muito longe. Mesmo que seja uma das primeiras nações a se organizar com um sólido ordenamento jurídico, dois séculos depois, os “civilizados” americanos resolvem à bala as diferenças raciais. 

O mundo também não esperava por essa dos ingleses. Tão cultos, tradicionalistas e formais, os britânicos deram um passo atrás na história da humanidade e torpediaram a experiência europeia de construir uma sociedade sem fronteiras, de livre circulação, com maior integração entre mercados e pessoas. Em outro extremo, no emblemático ponto de intersecção entre o mundo oriental e o ocidental, a Turquia está fechando a porta que poderia aproximar a Europa da Ásia. A institucionalidade turca foi quebrada com a tentativa de militares de tomar o poder pela força ao mesmo tempo em que o presidente quer aplicar um contragolpe para aniquilar inimigos e se transformar num ditador.   

Nesse mundo de tantos antagonismos, o Brasil sintetiza a própria contradição. Apesar da precariedade econômica atual, em apenas dois anos, a combalida pátria amada vai bancar as duas últimas grandes festas mundiais, a Copa do Mundo e agora a Olimpíada. Na sua essência filosófica, a contradição pode ser boa ou ruim, o legado, necessariamente, não precisa ser palpável. Assim ocorreu durante a Copa, hoje, o país se divide entre os que estão a favor e  contra os Jogos. Pesquisa da Folha de São Paulo, realizada um mês antes da competição, revelou que a metade da população é contrária a realização das Olimpíadas no país e que 63% acreditam que o Brasil terá mais prejuízos do que benefícios com o evento. Será muito difícil para os moradores do Rio de Janeiro entenderem por que a Cidade Maravilhosa, por 20 dias, vai se transformar em uma das capitais mais seguras do mundo, o que contrasta com a guerra civil do cotidiano onde ecoam tiros de fuzil e famílias choram pelas vítimas das balas perdidas.

No caminho da tocha, por 22 km e por algumas horas, Ribeirão Preto também entrou nessa rota de contradições em que se misturam emoção, orgulho, revolta e decepção. Uma parte da população fez questão de acompanhar de perto esse momento único em que a chama percorreu as principais ruas e avenidas da cidade. Cerca de sete mil pessoas estiveram no Parque Raya para ver de perto o simbolismo da chama que se acende para manter viva a esperança em dias melhores. Na mesma hora, as redes sociais foram inundadas por manifestações de pessoas revoltadas com o abandono da cidade. Moradores protestaram contra a maquiagem urbana feita no caminho da tocha, o que contrasta com a corriqueira demora para tapar buracos, melhorar a limpeza urbana e a infraestrutura.  Até políticos experientes ficaram surpresos com a velocidade da guaribada urbana, bem diferente das solicitações e das reclamações que se acumulam sem solução. Enquanto cidadãos comuns exaltavam a emoção de carregar a chama Olimpíca, atletas da cidade reclamavam do esquecimento. São as novas dimensões das contradições contemporâneas agora ampliadas pelas redes sociais. Mais do que a construção de praças de esporte ou obras de infraestrutura, a tomada de posição de cada cidadão será o grande legado desse olímpico jogo político. 

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