
Justiça sem violência
Os teóricos mais civilizados alertam que os pensamentos são o embrião das múltiplas formas de violência. Antes de cometer um ato de violência, alguém planeja, premedita, até chegar às vias de fato. Por isso, as manifestações radicais que pregam a virada de mesa não contribuem para o equilíbrio do sistema, principalmente quando partem de lideranças, de pessoas que ocupam cargos importantes ou que devem dar exemplo. Assim, quando as ameaças proliferam, as estradas são bloqueadas ou tiros interrompem uma militância política o estado de direito fica ameaçado. A sociedade fica sem norte. Está aí o trágico exemplo da Venezuela. A história registra muitos casos em que as divergências foram eliminadas pela violência física. As regras precisam valer para todos e este conceito de justiça nunca foi uma dádiva. A liberdade, a igualdade e o respeito às individualidades são frutos de conquistas. Por trás de questões prementes, o Brasil busca hoje a formação de uma identidade própria e nova que seja capaz de suportar e resolver as contradições.
Embora as circunstâncias atuais fundamentem a preocupação, uma olhada para a história recente mostra que as principais instituições, os governos e as lideranças políticas nunca tiveram vida fácil neste curto período republicano. Sempre estiveram acossados pelo fogo cruzado, cercados pelo fio da navalha. O alarido intenso dá a impressão de que o agora está bem pior do que antes. Contudo, já houve fatos bem mais trágicos, como o suicídio de Getúlio Vargas em 1954. Embora a história destaque o ato “heroico” e “teatral” do ditador, dá para imaginar a pressão que o ex-presidente sofreu a ponto de atentar contra a própria vida.
Um pouco mais para frente veio o golpe militar de 1964. Mesmo quem não viveu aquela época, pode imaginar a tensão daqueles dias com os tanques nas ruas, a tomada do poder e a supressão dos direitos e das garantias individuais. A pressão era tanta que a conjuntura política retrocedeu para o conflito armado, as torturas e as mortes. A retomada democrática, a partir de 1989, mais do que a reconquista do direito de votar, deixou uma grande lição. Daquela data em diante, a sociedade decidiria suas diferenças de forma democrática, com o pleno funcionamento das instituições, sob o amparo da Constituição de 1988.
De lá para cá, 30 anos se passaram e o regime democrático sobreviveu com as marcas deixadas pela instabilidade política. Apesar desse manto da normalidade, crimes políticos foram praticados, atos violentos ocorreram e a corrupção sistêmica dominou o aparelho do estado. Desde o ano passado, novamente o sistema vem sendo testado. Uma ex-presidente foi deposta pela via constitucional e o atual presidente não sai da berlinda. Sobreviveu a dois processos de impeachment e só não responderá a um terceiro porque o ilícito é anterior ao período do atual mandato. Na Páscoa, os melhores amigos do presidente foram presos e soltos em seguida numa clara demonstração de que algo não cheira bem no reino da Dinamarca.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido intimado para resolver questões cruciais e na sessão anterior decepcionou a opinião pública ao encerrar os trabalhos, por comodidade dos ministros, sem decidir o que estava em pauta. A temperatura está tão alta que até a ministra Carmem Lúcia veio a público para dizer que as diferenças ideológicas não podem ser fonte de desordem social. “Violência não é justiça”, declarou a ministra, afirmando que os tempos são de intolerância, intransigência e agressividade contra pessoas e instituições. A transmissão ao vivo das sessões do STF mostrou de forma evidente que o Tribunal e seus ministros estão longe da perfeição. Por sinal, o plenário da Suprema Corte reproduz de forma bem nítida o país cindido, rachado, cheio de controvérsias e até mesmo de interesses escusos que se misturam às aspirações nacionais. Nem poderia ser de outra forma. O Brasil está muito vivo e quando se trata de política e de ideologia não dá para ser homogêneo. O importante é a forma como as diferenças são resolvidas. Em vez de conflito, violência e radicalização, o Brasil hoje precisa de uma normalidade constitucional e de vozes serenas que novamente conduzam a um porto seguro.