
“KKK” meio sem graça
Não tem um santo dia que não apareça um aplicativo novo. O último lançamento, divulgado com alarde, foi o da Receita Federal que parcela a burocracia para preencher a declaração de Imposto de Renda. Caso o caro leitor não seja um internauta proativo vai aqui um levantamento das engenhocas que estão na moda até serem substituídas por uma mais moderna. Antes, porém, você precisa se familiarizar o bastante para saber que o aplicativo é um programa de computador que executa tarefas práticas, algo inventado para facilitar o cotidiano, mas que possui tecnologia suficiente para virar a vida humana de ponta cabeça. Fenômenos parecidos aconteceram com o automóvel, a televisão e o telefone. Até aparecerem, todo mundo vivia muito bem sem eles. Depois de descobertos, tornam-se imprescindíveis a ponto de alterar hábitos e comportamentos. Tem gente usando mais de um celular e outros fecham a cara se o lugar onde estão não tem o sinal do wi-fi. Sem acessar à rede, as mãos do internauta compulsivo tremem.
Vamos à lista dos mais conhecidos. O waze traz informações sobre o trânsito, o Foursquare fornece a posição geográfica dos contatos imediatos e o Tinder revela quais os seres humanos estão no raio de alcance. No polêmico Lulu, as mulheres, anonimamente, podem expor o desempenho dos homens e o tecnonutri faz o que até então era uma atribuição inerente ao ser humano: perceber a hora de comer e de beber água. Ainda existem aplicativos que indicam o cardápio do dia, incluindo os vinhos e as refeições. O Shazan parodiou o Silvio Santos e diz qual é a música que está tocando. O google tradutor quebra o galho de quem não sabe inglês e o Cinelândia mostra o que está passando nas telas do cinema. Caso ainda não tenha percebido, a sua vida ganha transcendência, muda de plano, nunca mais será a mesma a partir do momento em que você consegue “baixar” um aplicativo. Além disso, é chique demais na hora em que surge um problema e você puxa o seu celular com um dispositivo que resolve o problema. Você está fora da moda se o seu celular não tem nenhum aplicativo.A vida moderna está definitivamente dependente das opções encontradas nos celulares e da infinidade de ícones que agora são reveladores da personalidade humana. Se a bíblia tivesse agora uma edição revisada, traria uma adaptação do “diga com quem tu andas e eu direi quem tu és”. Na nova versão, com a pontuação meio atrapalhada e muitas abreviações, as escrituras profetizariam: “mostre-me os teus aplicativos e eu te direi quais são as tuas preferências.” Em tempo: tem um aplicativo para ler a bíblia on-line.
À revelia de qualquer vontade, as mudanças estão ocorrendo com enorme intensidade. O post do momento envolve a projeção da sociedade que emergirá como resultante dessas novas interações. Para os pais, o uso exagerado da internet já preocupa tanto quanto o uso de drogas ou a sexualidade precoce. Qual será o produto da relação entre esse novo indivíduo as mídias sociais, os aplicativos e a internet? Será uma sociedade mais inteligente, mais ágil, mais fria, mais fútil, mais próxima ou mais isolada? Essas mudanças de comportamento podem ser percebidas mais facilmente nos jovens que cresceram sob a influência das novas ferramentas e dos aplicativos. São cada vez mais rápidos, curiosos, interativos exímios navegadores e conhecedores das novas tecnologias. Por outro lado, está se formando uma geração mais individualista, superficial com dificuldades para refletir, para conviver com as diferenças e de se posicionar sobre as complexas demandas atuais. Pesquisas mostram que crianças e adolescentes estão perdendo a habilidade de reconhecer as emoções transmitidas pelo olhar, pela voz e pela expressão facial. Os jovens participam ativamente das comunidades onde as pessoas não se conhecem e nunca se encontram. Alguns pais resistem bravamente, limitam a utilização da internet e avaliam o momento adequado para permitir o uso do celular.
Os aplicativos e a internet também mudaram a forma de se comunicar com reflexos no vocabulário, nos sentimentos e nas emoções. Nesse processo, a perda mais sentida foi a da risada presencial, aquele sintoma mais visível da felicidade humana. Aos poucos, a alegria expressa na face do rosto está sendo substituída pelo solitário e frio “kkk”. Antes, o riso tinha mais graça e, em muitos casos, chegava a ser contagioso. Era bem mais divertido. Numa roda, muitos riam da gargalhada alheia. Os aplicativos permitem que a pessoa resolva tudo sozinho sem a necessidade de pedir ajuda. A vida está ficando mais rápida, mais eficiente, mais universal, mais prática, menos emotiva, mais solitária e, consequentemente, bem menos engraçada.