
As lições do passado
De acordo com o bom senso político, a democracia é o melhor sistema que o homem já conseguiu inventar, embora não seja perfeita. Hoje, por exemplo, já se questionam as falhas no mecanismo da representação, a escolha de um político que depois de eleito acaba se esquecendo dos seus eleitores e passa a agir por conta própria. As interpretações mudam à medida que o tempo passa. O país acabou de comemorar a Proclamação da República que para muitos historiadores foi um golpe. O mesmo teria acontecido com a Independência que não teria sido 100% autêntica. Quando se olha a história, a instalação da República aparece associada ao genocídio de Canudos. Os republicanos da época interpretaram mal a comunidade de Antônio Conselheiro que apenas cuidava da sobrevivência dos excluídos da época. Não tinha planos de derrubar o novo sistema implantado, mas mesmo assim o povoado dos descamisados foi trucidado de forma impiedosa junto com essa população indefesa na descrição feita por Euclides da Cunha no antológico livro “Os Sertões”.
No decorrer de 500 anos de história, desde a chegada da frota de Cabral, passando pela vinda da família real até as inúmeras revoluções que ocorreram de norte a sul, o Brasil se consolidou como um país de períodos de calmarias e sobressaltos cujas entranhas ainda não são bem conhecidas nem mesmo por seu próprio povo. A nossa história ainda precisa ser muito remexida para que se estabeleça uma correlação entre as opções feitas no passado e as circunstâncias do presente. Essa longa trajetória está recheada de acertos e de grandes enganos. Costuma-se dizer que faz parte da gênese do brasileiro o DNA pacífico que beira a apatia. No entanto, o país registra mais de uma dezena de guerras e revoluções sangrentas e pragmáticas, entre elas, a Inconfidência Mineira, a Balaiada, a Sabinada e a Revolução Farroupilha que durou mais de 10 anos com um saldo de milhares de mortos.
O Brasil costuma ser apresentado como uma democracia racial, por ora, uma quimera ainda muito distante do real. A escravidão durou três séculos, praticamente desde o início do Brasil Colônia, em 1550, até o final do Império em 1888. Entram nessa conta desumana mais de 300 anos de uma impiedosa escravidão. Apesar do dia da consciência negra, dia 20 de novembro, o preconceito oriundo dessa história nefasta continua mais vivo do que nunca. Basta observar a onda de episódios racistas que campeiam impunes pelo país todos os dias. Ainda convivemos diariamente com manifestações explícitas de ódio racial e as discriminações veladas que segregam os negros na hora de escolher candidatos a uma vaga de emprego. Uma das recentes e mais graves ocorreu em um ambiente popular onde teoricamente a grande paixão nacional deveria colocar todos em pé de igualdade. A injúria racial aconteceu em um jogo do campeonato brasileiro em que um torcedor branco do Atlético Mineiro xingou um segurança negro do estádio. A frase continha uma demonstração explícita de racismo. “Olha a sua cor”, disse o torcedor atleticano, identificado pelas câmeras do estádio, mas que nega a acusação. Nesse caldeirão racial, não se pode esquecer dos índios hoje confinados em reservas ambientais, reduzidos a pouco mais de 300 mil, depois da matança generalizada que ocorreu desde o descobrimento.
Esse passado tão significativo precisa ser visto com um pouco mais de atenção para compreender o momento atual. Também se faz necessário analisar o presente sem a impetuosidade das certezas inabaladas e dos dogmas das verdades consumadas. A nossa história está cheia de enganos. Com o passar do tempo, mesmo as teorias que parecem as mais assertivas vão se relativizando e a interpretação muda. Isso vale para a política, para a economia e para as tendências e os comportamentos.
As mídias sociais elevaram a temperatura. Para tudo agora, há um vídeo que revela a verdade derradeira que ninguém sabia, uma tese que explica tudo ou alguém que encarna o perfil do grande salvador. Mais do que uma época de mudanças profundas, vivemos um período de grandes definições em que estão sendo estabelecidos novos padrões de vida, de comportamento e de relacionamento social. Como todo mundo tem direito e deve se manifestar está cada vez mais difícil depurar as mensagens, pois o ódio gratuito, as verdades e as mentiras vêm à tona numa avalanche, sem que seja possível identificar com clareza os discursos e as reais intenções. Nesse momento de transição, a grande virtude é a sabedoria para conviver com o contraditório. Os conflitos de gerações, no ambiente de trabalho e nos relacionamentos pessoais e familiares precisam encontrar os pontos de equilíbrio. Diferente de tempos passados, a vida de agora se apresenta de forma diversa e customizada. Mais do que nunca, será preciso olhar para história em busca de sabedoria e conhecimento para interpretar os desafios dos novos tempos.