Mutação intolerante

Mutação intolerante

Se o julgamento fosse baseado em um suave voo de ultraleve, por cima da camada social brasileira, o espectador diria que o país extrovertido possui uma sociedade com ares democráticos, desprovida, por exemplo, do ódio extremado que dilacera o Oriente Médio. Contudo, a máscara brasileira de uma razoável democracia racial, étnica e sexual se esfacela, rapidamente, quando surgem ocorrências mais agudas. Recentemente, dois episódios sacudiram a instável vida institucional brasileira, coincidentemente, ambos os fatos aconteceram no Rio Grande do Sul, mas as conclusões podem ser esticadas para o restante do país. Instaurada a polêmica, logo a seguir vem a intolerância puxando o cordão dos atos criminosos, da perseguição, do linchamento moral e, não raro, das agressões.

O primeiro fato, amplamente divulgado pela mídia, foi a atitude racista de uma torcedora do Grêmio. Da grave injúria cometida pela gremista derivaram atos de intolerância e de falta de consciência. Além das ameaças de morte, a casa da torcedora foi incendiada de forma criminosa. Patrícia Moreira já responde a processo judicial e sofreu uma espécie de linchamento moral, que muitos consideram merecido. Todavia, em uma sociedade cada vez mais condicionada a não refletir, as primeiras reações que ganham forma são a vingança, a retaliação desmedida, o sentimento revanchista, mesmo que isso implique em infringir a lei.

A segunda polêmica envolveu a questão homoafetiva, um debate ainda incipiente e mal resolvido pela sociedade brasileira. O episódio ocorreu em Santana do Livramento, uma cidade da fronteira gaúcha na divisa com o Uruguai. Quem passa para o outro lado da avenida principal, a Sarandi, está dentro do país vizinho, entra em Rivera, cidade que recebe um grande número de turistas nacionais e estrangeiros interessados na compra de produtos importados. Com esse perfil cosmopolita, a cidade já deveria ter se acostumado a conviver com a diversidade de gênero. No entanto, nesse reduto do tradicionalismo gaúcho, uma bela e jovem juíza de 34 anos resolveu afrontar, de uma vez só, o preconceito, o machismo e a tradição. Carine Labres marcou um casamento comunitário para o Centro de Tradições Gaúchas (CTG). Dos 28 casais, um par era formado por Solange Ramires, 24 anos, e Sabriny Benites, 26 anos. Antes que a cerimônia fosse realizada, um incêndio criminoso, provocado por um coquetel molotov, impediu que os enlaces fossem realizados no CTG.

Novamente, “na pacífica sociedade brasileira”, a reação violenta surge como único meio possível para acabar com a diferença. “Resolveram, tal qual a inquisição medieval, queimar aquilo que simbolizava sua intolerância e incompreensão” ressaltou a magistrada, referindo-se ao incêndio. A juíza foi criticada pelos colegas da magistratura por ter afrontado o movimento tradicionalista desnecessariamente. Carine Labres agiu corretamente em brigar pela garantia de um direito das minorias, mas talvez a polêmica sobre a escolha do local pudesse ter sido evitada. De qualquer forma, com forte proteção policial, o casamento foi transferido para o auditório do Fórum, onde a juíza a caráter (um vestido de prenda verde) realizou a cerimônia em um clima gauchesco, com a presença de tradicionalistas pilchados de bombacha e de integrantes do movimento LGBT.  Felizmente, a irracionalidade não é unânime.

Assim como ocorreu no caso de racismo contra o goleiro Aranha, as ferozes controvérsias em torno desse casamento trazem à tona duas questões importantes; a sociedade atual entrou em um forte processo de mutação onde as regras estabelecidas pelo Estado não servem para contemplar a liberdade almejada por parcelas da população, especialmente as minorias que se sentem discriminadas e decidiram ir à luta. Esses fatos marcam novos comportamentos sociais. Não há nada de anormal no surgimento de tantos conflitos em uma sociedade tão numerosa e diversificada. O que faz a diferença e demonstra a maturidade é a forma como os conflitos estão sendo resolvidos. Nos dois casos citados neste texto, alguns contendores entenderam que a solução seria pôr fogo nos adversários. Estaria em curso na sociedade brasileira uma mutação cada vez mais intolerante tal qual aquela registrada na Idade Média?

Há ainda uma terceira vertente a ser observada nos episódios acima. Mesmo na sociedade globalizada pela internet e pelas mídias sociais, as pessoas com maior nível de consciência continuam sendo as protagonistas do debate, da reflexão e, consequentemente, da mudança. O mundo enfrenta uma crise de agentes e precisa de mais Aranhas e Carines. Exceto por manifestações isoladas, as grandes massas estão silenciosas, incorporando cada vez mais uma postura individualista e contemplativa. Nesta encruzilhada dos novos rumos, sem discussão ética, com os pensamentos e as reflexões em baixa, há que se repensar a forma de resolver conflitos, pois caso contrário a perversidade e a irracionalidade acabarão se generalizando.

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