Não perturbe o Salvador

Não perturbe o Salvador

Quem leu a frase acima e imaginou que seja algo relacionado com aquela mensagem colocada na porta dos quartos dos hotéis e das pousadas, para evitar uma abordagem indevida, se enganou. A chamada deste texto se relaciona à determinação feita pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) que entrou em vigor na terça-feira, dia 16 de julho, proibindo as operadoras de serviço de telecomunicações de ligarem para clientes através de centrais de telemarketing. A agência estabeleceu a criação da lista “Não Me Perturbe”, na qual os clientes que não estão interessados em receber ligações com ofertas de produtos e serviços de telefonia, acesso à internet e TV paga podem se cadastrar. 

As empresas deverão criar e divulgar um canal por meio do qual o consumidor possa manifestar o desejo de receber alguma oferta de produto ou serviço. Caso o cliente inclua seu nome no cadastro do “Não Me Perturbe” e continue recebendo ligações, com ofertas de pacotes e serviços, o usuário poderá reclamar no número 1331. As empresas receberão multas milionárias caso descumpram a lei. O novo serviço bombou e em algumas horas um milhão de pessoas se inscreveram no site para não serem mais perturbadas com ligações indevidas. Na hora de efetuar o bloqueio, o consumidor pode escolher as empresas das quais deseja proibir a ligação. 

Quem não teve uma experiência enervante com alguma empresa que pratica o telemarketing sem critério? Faz parte da boa educação atender ligações e responder com diplomacia uma, duas ou três vezes se deseja algum serviço, mas tudo tem limite. Recentemente, tive uma experiência estressante com sucessivas ligações que duraram três meses e, às vezes, ainda retornam. Foi daqueles calvários que só podem ser superados com a famosa paciência de Jó, personagem do antigo testamento que com a anuência do senhor foi submetido e resistiu a inúmeras provações do diabo, interessado em aniquilar sua tranquilidade e a sua fé inabalável na salvação. 

Sob a inspiração de Jó, atendi durante três meses dezenas de ligações de um agente digital que procurava pelo “Salvador”, pessoa desconhecida. Por um desses inexplicáveis desígnios, meu número de celular ficou como telefone de contato deste usuário que por alguma outra desventura, imagino, não conseguia pagar regularmente a conta telefônica. Imagino que o Salvador talvez seja um dos 13 milhões de brasileiros desempregados que enfrentam sérias dificuldades para honrar seus compromissos e que até tenha desistido de procurar emprego diante da falta de perspectivas e da demora da retomada econômica. Suponho que para o Salvador o ano de 2019 já esteja mesmo perdido, já que a reforma da Previdência ficou para o segundo semestre. Por essa imaginária conjuntura adversa, todo o mês o Salvador atrasava o pagamento da conta e lá recomeçavam as ligações do implacável agente digital para o meu celular. Estima-se que 1/3 das ligações de telemarketing sejam feitas por robôs. 

Nunca tinha passado por essa insólita experiência de conversar com uma máquina que tal qual um disco riscado sempre insistia nas mesmas duas perguntas. Queria saber se eu era o Salvador e diante da negativa perguntava se eu o conhecia. Enquanto a conta não fosse paga, o inoportuno virtual não dava sossego nos horários mais inconvenientes. A primeira reação seria de xingar o interlocutor virtual, mas isso de nada adiantaria. Gritar também não resolveria, pois a máquina permanecia impávida mesmo diante da elevação estratosférica do tom de voz. Seres humanos são mais inteligentes que máquinas, pois um indivíduo de carne e osso perceberia o erro e cancelaria o infortúnio. Máquinas não conseguem entender explicações, apenas estão preparadas para alternativas programadas.

Também foram inócuas as tentativas de resolver o problema por telefone no call center da empresa, pois os atendentes desconheciam que possuíam colegas virtuais. Depois de inúmeras tentativas frustradas de resolver o problema, o comparecimento a um posto de atendimento com humanos presenciais possibilitou a identificação do erro, graças à perspicácia de um atendente iluminado. Mesmo assim, cada vez que um número não identificado aparece no visor imagino que o agente virtual esteja do outro lado da linha no meu encalço, tal qual um 007 programado para cobrar o Salvador. A nova norma da Anatel vai impedir que robôs importunem milhões de pessoas. Já os serviços de telemarketing terão que ser redimensionados para que a oferta de produtos e as cobranças não seja um calvário na vida de nenhum Salvador. 

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