A nossa maldade

A nossa maldade

As maldades do Félix, o psicopata interpretado pelo ator Mateus SolanoNão esqueço as conversas que tive com um famoso criminalista ribeirãopretano, José Wilson Seixas Santos, já falecido, advogado especialista em defender pessoas acusadas de cometer crimes que causaram grande repercussão. Toda vez que ocorria um assassinato fora dos padrões da criminalidade, Seixas Santos era o advogado do réu. Numa das tantas entrevistas, perguntei por que ele sempre aceitava defender pessoas cujo crime chocara a opinião pública. Minha pergunta insinuava que ele era o advogado dos que cometeram crimes odiosos, aqueles que causam repulsa e que não seriam nem dignos de merecer defesa. Seixas Santos sorriu diante da estocada e me respondeu num tom educado e professoral.

— Caro jornalista. Nem o homem mais temente a Deus pode assegurar que um dia, tomado pela raiva e sob a violenta emoção, não cometerá um ato insano. Deus o livre e o guarde! Que esse infortúnio nunca ocorra contigo, mas se um dia você ou algum dos seus familiares tiver feito o mal a alguém, não se aflija. Eu estarei aqui para defendê-lo. Você poderá contar com meus préstimos para receber a pena justa pelo crime que cometeu.

Infelizmente, a crônica policial mostra que os crimes hediondos, aqueles que provocam pavor, indignação e repulsa fazem parte da gênese humana. Todos os dias, em algum canto do Brasil, tem uma barbárie que deixa a sociedade perplexa pela crueldade, pela covardia ou pela sordidez. Que razão insana teve o atirador da escola de Realengo ou o menino de 13 anos que dizimou a tiros a própria família, matando os pais, a tia e a avó? Assim como não se encontram justificativas plausíveis para tantos crimes, também não há uma explicação muito sensata para o enorme interesse que a opinião pública tem pela desgraça alheia, um filão que, nos últimos anos, passou a ser, exaustivamente, explorado por parte da mídia.

A propósito deste tema, no momento, largas parcelas da audiência televisiva brasileira se deleitam com as maldades do Félix, o psicopata interpretado pelo ator Mateus Solano. Depois de ter jogado uma recém-nascida numa caçamba, o autor da novela, Walcyr Carrasco, iniciou um processo de desconstrução do vilão, ou seja, até mesmo o cruel e perverso Félix tem suas razões para ser tão maligno. Sua perversidade foi originada por um estado de rejeição e de abandono na infância. Se no folhetim, a malvadeza de Félix está sendo substituída pela vilania de Aline, na vida real, o próximo crime ofusca a repercussão do anterior. Embora existam diferenças desumanas entre a ficção da novela e a realidade cruel, a teoria que começa a ser arquitetada pelo autor de Amor à Vida encontra respaldo em psicólogos e em especialistas no assunto.

Não fique chocado, mas ninguém é mau por natureza, o mal, acredite, está em todos nós. A maldade depende muito das circunstâncias. Philip Zimbardo, psicólogo americano, passou boa parte dos seus 80 anos de vida tentando entender o que leva as pessoas a praticarem o mal. A ruindade é genética, depende da educação, do berço ou possui raízes mais profundas cravadas no imponderável da alma humana? Numa entrevista recente que concedeu à revista Veja, Zimbardo faz uma observação que, teoricamente, poderia nos deixar mais aliviados: pessoas que cometem atrocidades não se encaixam em uma análise “normal” da natureza humana, mas logo a seguir o psicólogo cita Freud para dizer que todos nós carregamos um componente que incita a maldade. Esse lado obscuro pode ou não vir à tona, depende das circunstâncias. Zimbardo ainda faz mais uma inquirição aterradora que deixa qualquer um pensativo antes de apontar o dedo para o criminoso da vez. Submetidas a forte pressão, poucas pessoas resistem e conseguem manter a auréola do bem.

Pensando bem, alguma vez na sua vida você já cometeu alguma maldade da qual se envergonha? Quando a própria segurança ou da sua prole está ameaçada o homem vira um animal feroz. Tem gente boa, de família, que põe formol no leite que será bebido pelas crianças para aumentar a lucratividade. Outros, em manifestações políticas, quebram tudo que encontram pela frente. O mundo está cheio de “gente boa”. Nesse poço obscuro da ruindade humana, quem pratica o mal na sua forma mais perversa, no fundo, por algum motivo, não se importa com o próximo. Segundo o psicólogo americano, os vacinados contra o mal são aqueles que mantém uma trilha coerente ao longo da vida, não compactuam com a injustiça e se rebelam diante das anomalias. A melhor terapia continua sendo a autocrítica sobre todos os pensamentos e as atitudes que rondam a sua vida.

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