
O Brasil do desabafo
Diante de uma realidade adversa que às vezes parece imutável só sobra espaço para o desabafo. Assim tem sido este ano carregado pelo ambiente pesado da pandemia. Às vésperas das eleições, que sempre são sinônimos de esperança, o país ficou moralmente destroçado por dois episódios. O mais significativo envolveu o senador Chico Rodrigues do DEM de Roraima, que costumava fazer discursos inflamados contra a corrupção. Ao ser pego em flagrante, tentando esconder R$ 33 mil na cueca, o senador repetiu uma prática abominável de um passado recente que desmoraliza a política de forma geral. Se não bastasse a desonestidade vergonhosa, os atos seguintes do Legislativo encaminham o desfecho para o corporativismo deslavado. Chico foi aconselhado pelos pares a pedir licença por 121 dias, sair de cena para não ser julgado em plenário no calor dos acontecimentos, o que aumentaria o risco da cassação. Para completar a desfaçatez, quem assumiu a vaga foi seu filho, ou seja, nenhuma mudança no status quo com a impunidade bem à vista.
Outro episódio que chocou o país foi a soltura de um traficante perigoso com condenações na Justiça em nome de um legalismo constitucional. Um pouco antes desse atentado à segurança do país ocorrer, na Câmara dos Deputados, os parlamentares haviam incluído em causa própria um artigo no Código Penal que obrigava o juiz a olhar pelo retrovisor e revisar suas sentenças a cada 90 dias. Caso alguém do mundo da política seja preso, essa é uma brecha que pode ser explorada. Participaram desse conluio os deputados, o presidente que deixou passar, contrariando posição do Ministério Público Federal e o juiz da suprema corte que não levou em conta o risco que o réu oferecia à sociedade.
Quem acabou verbalizando o inconformismo contra a imoralidade desses fatos foi o comentarista Casagrande que fez um desabafo surpreendente no Globo Esporte, um espaço que não pertence ao campo da política. Polêmico e com avaliação controversa da opinião pública, amado por uns e odiado por outros, Casagrande acrescentou ao bolo da hipocrisia o caso do jogador Robinho, que mesmo condenado a nove anos de prisão por estupro na Itália estava em vias de ser contratado pelo Santos. Em tom de discurso político, o comentarista disse que um dos problemas do país é aceitar a sacanagem de forma passiva.
Os três episódios servem para reforçar uma antiga tese que se repete sempre que casos similares acontecem. No mundo que hoje gira em torno da internet e das redes sociais, a opinião pública continua desconhecendo a dimensão real da sua força. Mesmo a manifestação restrita da sociedade nos três episódios foi decisiva para interferir no rumo dos acontecimentos. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luis Fux, não hesitou em cassar a liminar do colega Marco Aurélio Mello. Além de discordar da decisão, não queria ver o órgão que preside com fama de conivência com o tráfico. Apostando na impunidade, Chico Rodrigues usou o artifício da licença para sair de cena, esfriar a chapa, apostando na impunidade que decorre do esquecimento. O Santos perdeu um patrocinador e diante da reação da opinião pública cancelou o contrato.
O quarto episódio não teve tanta repercussão, logo será esquecido, mas foi o mais comovente de todos. No Rio de Janeiro, uma mãe, Maria José Andrade, migrante nordestina que não pôde estudar, trabalhando como doméstica, decidiu dar aos filhos a oportunidade que não teve. Investiu tudo o que ganhou na educação dos dois filhos. “Eu falava para os meus dois filhos: Eu não tenho nada. Eu não tenho uma casa, eu não tenho isso, não tenho aquilo, mas eu vou dar para vocês o que eu não tive. Porque eu nasci lá onde o vento faz a curva e não tinha estudo, mas eu vou dar para vocês educação. Vocês vão se formar, vocês vão ser alguém’”, contou Maria José. Neste fatídico mês de outubro, Caio Gomes Soares, estudante de Educação Física, da Universidade Federal do Rio de Janeiro foi morto em casa por uma bala perdida. Perguntada se espera Justiça pela morte do filho, a mãe deu uma resposta simples e contundente. “Não, pois para ela a Justiça no Brasil não existe.”