
O Brasil que se arrasta
Aconteceu de novo, no esplendoroso e trágico Rio de Janeiro, cidade que deveria gerar uma imagem apresentável do povo brasileiro. Cláudia da Silva Ferreira, a brasileira de 38 anos, que morreu após ser baleada e arrastada por carro da Polícia Militar, é mais uma cidadã anônima que o país só conhece na morte. Cláudia era a síntese de uma parcela expressiva da população brasileira. Além do Silva no sobrenome, era auxiliar de serviços gerais, negra e morava em um subúrbio da violenta cidade do Rio de Janeiro. Em uma prática recorrente no combate aos traficantes, a Polícia primeiro abre fogo, as perguntas ficam para depois. No meio dessa guerra, não há espaço, nem tempo e nem vontade para distinguir quem é quem. No meio do tiroteio, todo mundo é bandido até prova em contrário.Ao que tudo indica, Cláudia era o que as pessoas costumam chamar de uma mulher guerreira, daquelas que mata um leão por dia. A auxiliar de serviços gerais era casada, tinha quatro filhos — 18, 16 e dois gêmeos de 10 anos — e ainda cuidava de quatro sobrinhos. Além da vida, a moradora do Morro da Congonha, em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, também perdeu a dignidade que se costuma conferir aos mortos. Não se sabe se morta ou viva, o corpo da cidadã carioca caiu do porta-malas do carro da PM e foi arrastada por 250 metros, como se fosse um bicho. Estava sendo transportada por uma viatura que representa o Estado brasileiro. Enquanto os familiares afirmam que Cláudia foi assassinada covardemente pelos policiais, a PM sustenta que a moradora foi vítima de bala perdida. A contradição será alvo de uma investigação que, provavelmente, será inconclusiva. Em nota, o comando da Polícia Militar declarou que “este tipo de conduta não condiz com um dos principais valores da corporação, que é a preservação da vida e da dignidade humana”.
As tragédias, por mais macabras que sejam, deveriam ensinar lições, mas quando as “exceções” são tantas e mais fortes que as regras abrem-se as veias do caos, da violência institucionalizada sem qualquer espécie de controle. Não sobra nada. Com a impunidade, os sentimentos de revolta e de vingança brotam fácil, na interminável vertente da violência sem limite. Esse crime hediondo não pode ser encarado como um fato isolado, mas deve ser visto como uma chaga traiçoeira que vem minando a cidadania. Para isso, basta Imaginar que o Rio de Janeiro, cenário de mais essa barbárie que chocou o país, tem o contorno do mapa do Brasil. O modus operandi da Polícia do Rio de Janeiro é o que predomina nas demais corporações responsáveis pela segurança do país. Seria incorreto afirmar que a PM sempre age dessa forma, embora os órgãos de segurança sejam useiros e vezeiros no abuso da autoridade. Na mesma semana, a Polícia Militar de São Paulo perseguiu de forma corajosa e desbaratou uma quadrilha perigosa que explodiu caixas eletrônicos em Caraguatatuba.
Infelizmente, o desconhecimento ou a desinformação não serve como consolo. As cenas de barbárie e de crimes violentos proliferam no país inteiro, tanto na cidade rica em que o garoto morto foi jogado no rio até na bela capital onde os detentos cortam cabeças dos colegas de cela. O problema do Brasil, cinco vezes campeão mundial e com um dos níveis de escolaridade mais baixos do mundo, é uma dupla perniciosa que se apresenta como “jeitão e o jeitinho.” No país que será sede da próxima Copa, o jeitinho todo mundo conhece, pois ele está impregnado no comportamento do sujeito sempre ávido por tirar vantagem. Virou uma espécie de praga miúda, silenciosa, que corrói as regras que deveriam estabelecer uma boa convivência social. A Polícia Militar do Rio de Janeiro aplicou o famoso jeitão. Os três policiais envolvidos na ocorrência resolveram a parada no estilo estoura o pedaço, da maneira poderosa, típica dos que se consideram acima da lei, protegidos pelo poder e pela força das armas. A realidade brasileira só mudará no dia em que uma cidadã, negra, pobre, moradora da periferia tiver, de fato, a proteção e as garantias do Estado. Por enquanto, o que se conclui de mais esse lamentável episódio do Rio de Janeiro é que a igualdade, a justiça e o respeito à dignidade humana podem ser arrastadas a qualquer momento. Portanto, no capítulo das garantias individuais, temos algumas bravatas escritas com letras mortas na Constituição Federal.