
O conterrâneo
Ingressei no primeiro ano escolar, em 1969, e tive duas experiências inesquecíveis. Já nos primeiros dias de aula fui pauta de uma reunião do corpo docente, uma vez que eu escrevia com a mão esquerda. De repente, fiquei cercado por uma roda de professores e pela temida diretora, na presença dos novos colegas. Os professores debatiam se a escola deveria ou não permitir a minha sinistra escrita. Com os olhos arregalados, acompanhei o debate, temendo pela decisão, pois não imaginava que esse viés de esquerda poderia ser considerado uma infração grave. A coisa estava feia para o meu lado quando uma voz firme, que não consegui identificar de quem era, disse: “deixem o guri em paz para ele escrever com a mão que quiser”. A primeira vitória significativa da liberdade que presenciei. A roda no meu entorno logo se desfez.
O ano letivo prosseguiu, normalmente, até que quase ao final do ano algo inédito aconteceu. De repente, do nada, um fato provocou um alvoroço na escola. Nas provas bimestrais, as professoras insistiam em duas perguntas na ânsia de que todos os alunos soubessem e compreendessem a dimensão daquela notícia. A primeira pergunta da matéria de Educação Moral e Cívica era: quem é o presidente da República? Na segunda questão crucial: “onde nasceu o presidente da República”? Lembro de uma professora curvada ao meu lado, cobrando a resposta que eu não sabia no auge dos seis anos. A pressão era tanta que o desconhecimento soava como um atestado de burrice.
O bageense Emílio Garrastazu Médici assumiu a presidência em outubro de 1969. Um ano antes, em dezembro de 1968, outro general gaúcho, de Taquari, Arthur da Costa e Silva havia sepultado qualquer ilusão que a população tivesse com a Ditadura Militar. Costa e Silva decretou o Ato Institucional Número 5 que censurou a imprensa, fechou o parlamento, suprimiu as garantias individuais e cassou as liberdades políticas. O conterrâneo, por sua vez, comandou um governo feroz que aniquilou opositores, praticou a tortura, instalando o regime do medo. Triste memória. Não lembro de ninguém na minha infância falando a respeito disso em Bagé. Suponho porque naquela época era fácil censurar as notícias em uma cidade pequena que tinha três rádios e um jornal.
Nos anos em que ficou no governo, Médici foi várias vezes a cidade natal. Em quase todas elas, eu estive presente, uma vez que o comparecimento de todas as escolas era obrigatório. Um longo corredor polonês de estudantes era formado no trajeto do aeroporto ao centro da cidade. Longas horas de espera no Sol, sem água e sem comida. A comitiva sempre atrasava, numa delas passou às duas da tarde, provocando uma fome danada. Apesar da frequência assídua, nunca vi o conterrâneo de perto, pois o presidente-ditador passava correndo num carro preto, com os vidros escuros fechados, cercado por batedores. Os sacos de papéis picados que todos os alunos jogavam para cima, arduamente recortados durante o semestre, caiam nas próprias cabeças numa cena patética. Talvez por medo de um atentado, Médici nunca desceu do carro para cumprimentar seus conterrâneos estudantes. No epílogo do governo, deu de presente para a terra Natal uma estrada nova, asfaltada, no caminho para Porto Alegre e um ginásio de esportes, batizado com o seu apelido, “Militão”. Também estive obrigado na inauguração do ginásio, o primeiro que vi com cobertura, arquibancada e piso de parquet para jogar futebol de salão, vôlei e basquete. Naquela época, disseram as más línguas que o conterrâneo não conseguiu esconder a cara de decepção quando viu o “Militão” pronto. O dinheiro que mandou deveria dar para construir um ginásio três vezes maior do que aquele. Essa história virou lenda. Afinal, naqueles tempos de censura e de repressão, quem teria coragem para interpelar os militares sobre um possível desvio das verbas?
Vim saber dos detalhes dessa história anos mais tarde, na Universidade Federal de Santa Maria, quando ingressei no curso de jornalismo. Na Universidade, esses fatos, bem conhecidos pela maioria de professores e alunos, eram a mais absoluta novidade para mim. Lembro que quando retornava a Bagé nas férias, nas conversas com amigos e familiares, minhas críticas ao regime e ao conterrâneo não eram bem recebidas e vistas com temor. Por várias vezes, ouvi o “tome cuidado com o que tu falas”. Estávamos no começo dos anos 80 e ainda havia muitas dúvidas sobre os limites e a extensão da abertura do general João Figueiredo, por sinal, um carioca que teve a sua formação no Colégio Militar de Porto Alegre. Hoje, vejo algo positivo nessa experiência política. Desde então, nunca tive dúvidas de que a democracia — o regime da liberdade —, com todos os seus defeitos, sempre é muito melhor do que qualquer ditadura.