
O crime perfeito
Os jornais, as revistas e as diversas mídias costumam abrir generosos espaços para as acusações e não adotam o mesmo procedimento quando se trata de mostrar que o acusado foi absolvido. A redenção do réu costuma ser publicada em uma discreta nota de rodapé. Quem tem um pouco mais de idade, os cabelos grisalhos ou quase brancos, além de uma memória profícua, certamente lembra do turbulento impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo, o famoso “Caçador de Marajás” de Alagoas que protagonizou um governo desastroso. Aquela movimentação ocorrida em agosto de 1992, havia sido uma das últimas grandes manifestações políticas da sociedade brasileira, que após essa mobilização mergulhou numa longa letargia, só interrompida, em meados do ano passado, quando a população brasileira retornou às ruas por motivações diversas, entre elas, a redução do preço das passagens e as reformas políticas que, por sinal, até hoje não aconteceram.A esmagadora maioria da população brasileira, que vivenciou aquela época, tinha uma certeza cristalina de que se havia alguém culpado no Brasil, esse alguém se chamava Fernando Collor de Melo, o político cujo governo patrocinou todo o tipo de escândalo, da cobrança de propina ao pagamento de despesas pessoais com dinheiro público. Com capas e incontáveis reportagens, a imprensa denunciou que PC Farias, morto em circunstâncias que nunca serão suficientemente esclarecidas, era o tesoureiro do esquema do ex-presidente, encarregado de fazer os negócios ilícitos e espúrios que envergonharam o país e provocaram uma grave crise institucional e econômica.
A extensa ficha processual de Collor inclui 14 inquéritos no Superior Tribunal Federal, oito petições criminais e mais duas dúzias de habeas corpus. O ex-presidente era acusado pelo crime de peculato (uso do cargo público para desvio de recursos) por corrupção passiva e falsidade ideológica. Segundo a denúncia do Ministério Público, Collor teria recebido propina de empresários do setor de publicidade em troca de benefícios em contratos. Conforme a acusação, o dinheiro era usado para pagar contas pessoais do ex-presidente, como a pensão de um filho fora do casamento. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) absolveu Collor desses crimes. Aliás, em todos os julgamentos em diferentes esferas de poder, o “Caçador de Marajás”, para espanto geral, nunca foi condenado. O STF considerou não haver provas suficientes para condenar o parlamentar pelo crime de peculato. A relatora da ação que se arrastou por duas décadas nos escaninhos da Justiça, a ministra Cármen Lúcia, destacou que não ficou provado que o ex-presidente tinha conhecimento dos desvios e ainda desdenhou da acusação apresentada pelo Ministério Público, que segundo a magistrada não pode ser considerada um “primor de peça”.
A esta altura, todo o cidadão brasileiro que acompanhou a história, que participou das passeatas nas ruas e que se vestiu de preto em vez do verde amarelo, deve estar se perguntando. Que história é essa? Fomos enganados? A opinião pública, quase todos os veículos de imprensa e as mais reconhecidas entidades do país cometeram um grave equívoco? O ex-presidente cometeu o crime perfeito, pois apesar das “evidências” não constam nos autos provas incriminadoras? As reportagens que apontaram casos de corrupção e tráfico de influência são obras de ficção? Collor é um injustiçado e deve ser reabilitado perante a opinião pública, uma vez que não é mais possível devolver o mandato? Vale lembrar que há pouco tempo, uma cerimônia em Brasília reabilitou a memória do ex-presidente João Goulart.
A primeira conclusão que se tira da absolvição de Collor é a lentidão da Justiça Brasileira que conclui o processo 22 anos depois da ocorrência dos fatos. Apesar dos avanços da democracia e do Judiciário, no Brasil, não se faz Justiça a tempo e à hora. E isso é muito grave para uma nação que precisa evoluir. A segunda constatação evidencia que na legislação brasileira há um formalismo exagerado para demonstrar materialidade e autoria. Dois crimes prescreveram. Às vezes, o processo também esbarra justamente na falta dele. Pesou contra a acusação o fato das testemunhas não terem assinado o papel em que se comprometiam a dizer a verdade. Vejam só que falha processual. Ainda assim, na sintaxe da lei, há uma margem muito grande para a famosa “interpretação” ou o “enquadramento”. A prolixidade da norma vale mais que o domínio dos fatos. Não foi encontrado nenhum cheque nominal de PC Farias para Fernando Collor, portanto não se pode provar que o dinheiro era para o ex-presidente, embora todos soubessem das ligações estreitas que, historicamente, uniram Collor e PC. Enfim, para condenar não basta probabilidade, exige-se a certeza e em caso de dúvida, louve-se o réu. Na ausência da Justiça, sobrou só o legado do jornalismo para impedir que a história vire uma obra de ficção.