
O custo da imprevidência
"Farinha pouca, meu pirão primeiro”. O ditado antigo soa como uma luva para representar o debate que está ocorrendo no país em torno da reforma da previdência. Há um consenso entre os economistas e os especialistas de que a previdência brasileira ficou velha e obsoleta, tornou-se uma fábrica de injustiças, provoca distorções sociais e distribui privilégios injustos, perpetuando a desigualdade.
No entanto, o consenso não vai muito além da necessidade da reforma. Quando a discussão se encaminha na direção das bases dessa mudança, a discórdia se instala e começa um feroz jogo corporativo entre grupos interessados em garantir a escassa farinha para o pirão. Os governos de Fernando Henrique Cardoso, de Lula e até de Michel Temer chegaram a ensaiar uma reforma que literalmente foi morta no ninho. O atual apresentou a mais ampla e ambiciosa reforma do período democrático com regras bastante duras, que não mexem nos famosos “direitos adquiridos”, mas que projeta uma situação de igualdade para os próximos anos, proporcionando um alívio para as finanças públicas.
O novo projeto propõe uma isonomia de tratamento. A principal regra está expressa na aposentadoria de 65 anos para os homens e de 62 para as mulheres. Outra norma que promove a justiça social é a igualdade no pagamento dos benefícios para o funcionalismo público e a iniciativa privada. Hoje, o teto de aposentadoria do INSS está em R$ 5.839,45, mas são raros os casos de trabalhadores privados que conseguem alcançar esse valor ou chegar perto dele. A grande maioria sucumbe ao fator previdenciário, artifício criado no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995, que reduz os vencimentos dos aposentados em até 40%. Para se aposentar, homens e mulheres precisarão ter um tempo mínimo de contribuição de 20 anos.
No decorrer do tempo, as aposentadorias foram corroídas por reajustes que não repuseram a inflação integralmente. Durante muitos anos, a correção das aposentadorias foi inferior à variação do salário mínimo. Isso fez com que alguém que se aposentou com três salários mínimos, por exemplo, depois de alguns anos, passasse a receber dois salários ou menos, consolidando uma perda real sem perspectiva de recuperação. Esses dois artifícios, o fator previdenciário e a correção inferior à inflação e ao reajuste do salário mínimo, condenaram os aposentados a uma situação de penúria sem possibilidade de reversão. Devido a problemas de saúde, a grande maioria não consegue voltar ao mercado de trabalho e os que encontram alguma oportunidade precisam se sujeitar a fazer bicos, muitas vezes, incompatíveis com a idade. Pelo menos para os trabalhadores da iniciativa privada, aposentadoria não é sinônimo de descanso e tempo para desfrutar da última fase da vida, mas uma forma de complementar a renda que exige um trabalho extra ou o suporte de familiares.
O funcionalismo público, justamente o setor que ganha os melhores salários, recebe por parte da previdência um tratamento diferenciado. Até pouco tempo, a regra para os servidores públicos garantia o salário integral e os mesmos direitos percentuais do pessoal da ativa. A norma só mudou para quem ingressou no funcionalismo federal depois de 2012. Nessa questão da idade e dos vencimentos, que são pontos centrais da nova reforma, a proposta atual estabelece a igualdade, acabando, depois da transição de 12 anos, com as aposentadorias precoces. Uma das causas do déficit atual da previdência está no fato de que a longevidade permitiu a segurados que contribuíram com 20% vivam um período igual ou maior recebendo 100%. Há muitas pessoas que se aposentaram com 48, 50 e 55 anos. Não há nenhuma ilegalidade nisso, pois a legislação permitia, mas não há dúvida de que chegou a hora de mudar para adequar a aposentadoria à nova expectativa média de vida que já bate na casa dos 76 anos. Lembrando que vida longa não é sinônimo de vida saudável.
Aposentado no Brasil também paga Imposto de Renda (IR), mesmo que os vencimentos sejam irrisórios e a maior parte seja gasta com plano de saúde e remédios. Uma das promessas de campanha do presidente Jair Bolsonaro foi acabar com o desconto do IR para quem ganha menos de R$ 5.000,00. Aposentados e contribuintes aguardam com ansiedade o cumprimento da promessa.
A ideia expressa pela paródia do pirão reforça a tendência egoísta do ser humano que coloca suas necessidades em primeiro plano mesmo que prejudiquem o bem-estar coletivo. Ao contrário do que ocorre em outros países, também revela uma concepção egoísta, mesmo em situações extremas. A falência de vários estados brasileiros que não conseguem pagar as aposentadorias se tornou um fato público e mesmo assim muita gente fecha os olhos a essa realidade. Falta um senso de identificação coletiva, uma unidade nacional que fortalecesse a responsabilidade conjunta pelo destino do país. As gerações atuais e as futuras estão à mercê de interesses corporativos. A conta do rombo da previdência já aparece na precariedade da infraestrutura oferecida pelo Estado. Em breve, essa imprevidência custará muito caro.