
O decoro deles e o nosso
A vida fica insuportável sem o mínimo decoro. Para conviver em família, com os amigos e no trabalho, há que se ter uma dosagem mínima de compostura. Ninguém pode sair falando tudo o que pensa, nem tampouco agir como se fosse o único dono do ambiente. A reflexão sobre o impacto desse conceito na vida cotidiana revela uma abrangência que se estende à educação, à cordialidade, à ética e à compostura. Além de fazer um papel muito feio, o indecoroso, muito em voga ultimamente, atrapalha muita gente. A subjetividade faz com que as pessoas tenham dificuldades para entender o significado do decoro. Afinal, as normas do recato não estão escritas em nenhum lugar. Pelo contrário, traçam uma linha tênue que distingue a decência da indecência, separa a dignidade do comportamento vil, diferencia a atitude solícita do ato miserável. O fino trato ainda pressupõe o respeito aos próprios limites para que, a partir dessa fronteira, não se invada inadvertidamente o espaço alheio. Se para o cidadão comum isso é fundamental, para quem ostenta uma função pública torna-se imprescindível.
As notícias de Brasília e, principalmente, as imagens mostraram que uma das mais importantes instituições do país, que representa o poder legislativo, quebrou todas essas formalidades indispensáveis ao trato dos assuntos públicos. As cenas que ocorreram na Câmara dos Deputados rebaixaram o Brasil à época do coronelato, dos jagunços, da selvageria e da lei do mais forte. Todo o brasileiro razoavelmente bem informado conhece a fragilidade jurídica do país, mas ainda temos um ordenamento mínimo que sustenta a organização social e o funcionamento das instituições. A legislação atual resulta de uma longa e sinuosa luta democrática. Os grupos organizados que aparelharam o Estado criaram sofisticadas maneiras para roubar e enriquecer a qualquer preço, mesmo que para isso seja preciso transformar o leite das crianças em veneno ou falsificar os remédios que serão usados pelos doentes de um hospital. Esses atos lesivos elevam a falta de decoro à potência máxima.
As agências internacionais, que medem o risco para investidores, já rebaixaram a nota do Brasil por conta dos desacertos da política econômica. Estamos próximos de entrar para a divisão dos caloteiros e maus pagadores. Se na política também houvesse uma Mood’s ou uma Standar & Poor’s, com as cabeçadas, tapas e cotoveladas que foram registradas na Câmara dos Deputados, o país seria rebaixado à divisão das democracias precárias em que as regras não são respeitadas. O eleitor, o cidadão que assistiu àquelas cenas deve se perguntar qual a razão para uma disputa tão feroz? A matéria em disputa interessa a pobres e ricos? Existiria alguma discussão cujo pano de fundo seria um conflito de classes ou algum projeto político consolidado?
Diante de um debate tão feroz, soa até meio ingênuo analisar o decoro parlamentar, pois o comportamento da maioria dos deputados passa longe do comportamento ético e moral. O brasileiro médio tem dificuldades para definir o significado do decoro. Um cidadão menos avisado chegou a confundir a palavra, que tem como sinônimos a dignidade, a honradez, o recato e a decência com o “de couro”, a matéria-prima usada para produzir roupas e calçados. O pundonor, aquela altivez que sempre deve estar temperada pelo brio próprio, anda escasso.
Não há dúvidas de que a falta de decoro parlamentar encontra forte inspiração nas ruas, onde são comuns cenas de desrespeito às vagas de deficientes ou de idosos, sem contar o descarte de lixo em locais públicos. Embora a exigência de uma postura ética pareça algo inocente em um meio apinhado de gente especializada em levar vantagem, o cidadão e a política não podem aceitar a indecência, a indecorosidade e a impudência como cenas normais. Não foi à toa que quase todos grandes filósofos — Platão, Sócrates, Séneca, Nietsche — trataram da moral da política, colocada à prova na votação do impeachment. Aristóteles se ocupou do tema com uma reflexão que vale para os deputados e para o cidadão comum. “A virtude moral é uma consequência do hábito. Nós nos tornamos o que fazemos repetidamente. Ou seja: nós nos tornamos justos ao praticarmos atos justos, controlados ao praticarmos atos de autocontrole, corajosos ao praticarmos atos de bravura.” Séneca emendou, “quem não tem moral, não tem direitos”.
Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil