O descuido prosseguido

O descuido prosseguido

Quem faz uma retrospectiva do que já viveu, certamente encontra vários momentos em que a circunstância imponderável bateu à porta. No decorrer da vida, às vezes, as alternativas se entrelaçam. Um detalhe, aparentemente insignificante, pode modificar a trajetória para um rotundo fracasso ou na direção de um estrondoso sucesso. Às vezes, nem um, nem outro. O quase resulta numa mudança de rumo, uma rota diferente daquela que parecia estar traçada. Assim, caro leitor, por alguns instantes, puxe a memória. Provavelmente, alguma faceta pode ter influenciado a sua entrada ou a saída de uma empresa. Um fator inesperado resultou na troca de cidade, uma conversa mais significativa modificou o destino de um relacionamento amoroso e uma discussão mais intempestiva selou, definitivamente, o rompimento de uma longa amizade. Em vários momentos, nesse triz que, sorrateiramente, acompanha qualquer pessoa, a vida vai dando voltas e alcança condições, lugares e posições imprevisíveis, situações que eram inimagináveis lá no começo da jornada. 

Se há uma situação em o destino apronta peripécias, esse momento é a Copa do Mundo, evento único, realizado de quatro em quatro anos, sempre em eventualidades que jamais se repetem. O diversificado Mundial das nacionalidades permite que se faça um paralelo entre as histórias dos jogadores/personagens e as trajetórias das pessoas comuns. Assim como na vida cotidiana, dentro de campo estão resistências, circunstâncias coletivas e habilidades que se destacam. Nem sempre isso se traduz em vitórias, em objetivos alcançados ou em momentos de felicidade. No dicionário, eles não são sinônimos, mas o “se” e o “quase” possuem “quase” o mesmo sentido. 

O Brasil poderia ter uma taça a menos se o craque Roberto Baggio não tivesse chutado um pênalti para fora na Copa de 1994. A geração de Zico, Sócrates e Falcão não seria frustrada se Paolo Rossi não tivesse feito três gols em uma única partida. Por uma questão de milímetros, o goleiro brasileiro Barbosa quase defendeu o chute do ponteiro uruguaio Chiggia, no “Maracanaço” de 1950, uma derrota que provocou um trauma maior do que os 7 a 1 da Alemanha em 2014.  Veja então esses átimos do destino. Se Zico não tivesse errado um pênalti em 1986, se Ronaldo Fenômeno não tivesse sofrido uma convulsão na final de 1998 e se o lateral Roberto Carlos não tivesse arrumado as meias em hora imprópria em 2006, hoje o Brasil não seria freguês da França.

Quem bem descreve o quase em sua vida é o ex-jogador e colunista esportivo, Eduardo de Andrade, mais conhecido como Tostão, autor do livro “Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos”, publicado pela prestigiada Companhia das Letras. O quase foi tão presente na vida do ex-jogador que ele incluiu no livro um capítulo sobre o tema que também inspira esta coluna. O tricampeão do mundo de 1970 viveu uma época de ouro do futebol brasileiro ao lado de Pelé, Zagallo, Carlos Alberto Torres e Rivelino. Tem histórias para contar. Atacante talentoso, revelado no Cruzeiro, Tostão descreve no livro os vaivéns da própria vida. Tinha uma carreira promissora até que num jogo no Pacaembu, sem muita importância, em setembro de 1969, uma fatalidade mudou o seu destino. De forma atabalhoada, o zagueiro Ditão do Corinthians acertou uma bolada no olho esquerdo quando estava caído no chão. Naquela época, a bola era pesada. Tostão teve um descolamento de retina, fez uma cirurgia nos Estados Unidos, ainda conseguiu jogar a Copa de 1970, mas logo teve de abandonar a carreira para não agravar o problema da visão. 

Por conta desta fatalidade, resolveu cursar Medicina para conhecer o corpo e a alma do ser humano. Estudou com afinco e se tornou um médico renomado em Belo Horizonte. Depois de alguns anos, a antiga paixão falou mais alto e Tostão aceitou os convites de emissoras de TV e jornais para ser comentarista e colunista esportivo. Por conta da sua bagagem cultural, tornou-se um dos mais lúcidos analistas do meio esportivo, um ramo do jornalismo onde comentaristas e narradores enfadonhos não se cansam de repetir as mesmas obviedades por décadas. “O time joga com duas linhas de quatro, a equipe que ataca muito se expõe ao contra-ataque e quando a defesa está fechada no meio o melhor é atacar pelas pontas”. Tostão encerra o capítulo do “quase” escrevendo que “todo encontro é um reencontro, com o que vivemos, imaginamos, sonhamos e deixamos de viver... Também sempre estamos perto de perder aquilo que temos. Por muito pouco, por instantes fugazes e por acasos, a vida muda de rumo”. No livro, a última bolada vem com a classe de Guimarães Rosa: “a vida é um descuido prosseguido”. 

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