
O direito sem força
Já faz algum tempo que a violência no Brasil deixou de ser aleatória para ser algo instituído. Isso pode ser constatado com a observação mais atenta às notícias do dia a dia. Muitas pessoas ainda não perceberam que a distração ou a exposição demasiada coloca a segurança em risco e pode ser fatal. Os seres humanos costumam encarar a morte como um vaticínio inevitável, por isso, soa meio sem sentido quando se noticia que alguém foi morto por causa de um “terrível engano”. Há quem sustente que a morte, quase sempre surpreendente, quase nunca se engana.
Uma fatalidade ocorreu com Francisco e Regina Múrmura que, a julgar pelas fotos e o tempo de união conjugal (50 anos) era o que se poderia chamar de um casal feliz. Ao procurar um destino no sábado à noite, no Rio de Janeiro, em vez de inserir no GPS a Avenida Quintino Bocaiuva, o casal digitou a rua e foi parar no meio de uma favela violenta. Impiedosamente, os criminosos que dominam a favela atacaram covardemente o casal, Regina foi ferida e morreu quando chegou ao hospital.
Um pouco antes dessa notícia, o país ficou estarrecido quando imagens feitas com celulares mostraram que policiais do Rio de Janeiro e de São Paulo executam, sumariamente, ladrões rendidos e desarmados, estabelecendo o conhecido padrão da justiça com as próprias mãos. Seguidamente, policiais são flagrados manipulando cenas de crimes. Organismos internacionais acusam os órgãos de segurança do Brasil de serem responsáveis por um número elevado de mortes. Ainda persistem no país a tortura, os maus-tratos, as execuções e outras práticas abusivas. Essa violência surge como uma resposta policial a uma situação descontrolada em que o Judiciário perdeu a credibilidade como agente provedor de Justiça. Seria uma espécie de vingança, uma reação incorporada pela instituição contra aquela violência praticada pelos criminosos do Rio de Janeiro que, sem motivo nenhum mataram uma mulher e destruíram a vida de uma família. Hoje, no país, bandidos e uma parcela da polícia desafiam a Justiça e seguem as próprias leis.
Recentemente, Ribeirão Preto acrescentou uma terceira via a esse noticiário sombrio: a violência desmedida oriunda do cidadão comum, que também não acredita no Judiciário e na Polícia, e resolve fazer Justiça com as próprias mãos. Essas parecem ser as circunstâncias em que morreu Josimar de Oliveira Cardoso, de 27 anos, acusado de tentar roubar a bolsa de uma estudante. Detido por pessoas que estavam nas proximidades, Josimar teria sido linchado por moradores até a chegada da Polícia. Na Delegacia, passou mal e morreu no Hospital. Sua morte pode ser decorrência do espancamento. A família alegou que ele tinha problemas mentais e que ficava violento quando não tomava a medicação adequada. Se as investigações da Polícia e do próprio Ministério Público concluírem que Josimar morreu em função do linchamento, constata-se, que neste caso, a tentativa de roubo foi punida com a morte.
Josimar faz parte de uma população de baixa renda e, pela dinâmica do entendimento da sociedade atual, não vem muito ao caso se de fato ele era um doente mental, o que serviria de atenuante para o crime que cometeu. O caso não deve receber muita atenção das autoridades e também já saiu da pauta de interesse da imprensa, mas os limites do direito continuam sendo cruciais para a sociedade atual, hoje dominada pela associação da raiva com o descrédito que resultam em um grau de violência ainda maior.
O sábio e reflexivo Platão já dizia que a Justiça não passa da expressão do mais forte e que os valores considerados justos não são o fundamento da autoridade, mas decorrência das relações de poder. Karl Marx substituiria as relações de poder pela supremacia resultante da dominação econômica. Ninguém desconhece que há uma relação evidente entre direito e força, mas o direito não pode se basear apenas no uso e no abuso da violência como um poder supremo. Em vez da civilização, teríamos a instituição da barbárie pelos criminosos, policiais e até por pacatos cidadãos. Os fins não justificam os meios, pois na base filosófica do direito consta que não é a força que valida a norma, mas a legimitimidade da norma que pode justificar o uso da força. Sem a observância desse princípio, o impeto da vontade individual assassina os mais elementares princípios do direito. Sem o respeito às regras, não há equilíbrio, paz e segurança.