O discurso messiânico

O discurso messiânico

Embora pareça uma realidade distante, ninguém mais desconhece que o mundo se globalizou. Apesar de o fenômeno, na forma contemporânea mais intensa, ter aproximadamente 30 anos, persistia a falsa sensação de que o Brasil era uma ilha abençoada, distante das guerras, das catástrofes e das tragédias que se tornaram rotineiras em outros países do mundo. O lado americano do mundo assistiu pela TV aos conflitos no Oriente Médio, ao alastramento dos grupos terroristas pela África, aos atentados à bomba até a onda de xenofobia que contaminou os principais países da Europa. O capitalismo dominador e opressivo dos antigos colonizadores condenou as populações africanas a viverem em eterno regime de pobreza. A população civil da Síria, do Iraque, do Líbano e da Palestina virou alvo no meio das guerras de fundo religioso. Diante da falta de perspectivas, os sem-esperança deram início à travessia quase suicida em direção à Europa, em embarcações improvisadas, virando a globalização pelo avesso. As legiões de refugiados romperam fronteiras, numa corrente emigratória onde o destino pouco importa, o que vale é a distância do país de origem. 

Há um ano, até mesmo brasileiros bons de geografia teriam dificuldades para responder onde fica Pacaraima. Hoje, quem assiste ao noticiário de TV, já sabe que a jovem e pequena cidade, com cerca de 10 mil habitantes, segundo o censo de 2010, virou a porta de entrada, a conexão do Brasil com a grave crise econômica e política que afeta a vizinha Venezuela. A distante Pacaraima virou a rota de fuga das vítimas de um regime autoritário.  Apesar do estado de calamidade, o que está acontecendo em Roraima fica sem a devida atenção por envolver um estado com pouco peso político e econômico. Se Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda ainda estivessem vivos, nenhum dos dois provavelmente incluiria a xenofobia como um elemento integrante do caldo cultural da miscigenação que formou a decantada boa índole do perfil brasileiro. Pelo menos nessa autoavaliação, a intolerância não está na raiz do genoma nacional, afinal não se poderia aceitar uma pátria de macunaímas, de homens e de mulheres sem caráter e espírito de generosidade.

A globalização dos perseguidos pela própria pátria fez com que milhares de venezuelanos entrassem de uma hora para outra pela fronteira de Roraima. Não demorou muito para que a solidariedade entre vizinhos e a intolerância ficassem sob o tênue fio da navalha. A violência atribuída a venezuelanos contra um comerciante de Pacaraima fez com que eclodisse a vingança de “pacatos cidadãos brasileiros” que queimaram um acampamento com os míseros pertences dos refugiados que deixaram a sua pátria com a roupa do corpo. Diante do caos iminente, não será surpresa nenhuma se algum presidenciável da ocasião propuser a construção de um muro. O Estado de Roraima já pediu o fechamento da fronteira, uma afronta à diplomacia internacional. Numa campanha presidencial de tempo escasso, rasa no nível de debates, uma questão grave como essa que insere o Brasil na problemática contemporânea não deverá receber muita atenção dos candidatos. 

Se estivesse vivo, talvez Sérgio Buarque de Holanda diria que na raiz do problema venezuelano e brasileiro está a grave questão política. Ditadores governam por longos períodos, pois usam todo o aparato estatal para dizer que sabem o que é bom para o povo. Com o passar do tempo, transformam-se em figuras messiânicas que controlam o poder com mão de ferro. Hugo Chavez comandou a Venezuela por 14 anos, só saiu do poder quando morreu. Seu sucessor Nicolás Maduro brotou das sombras há cinco anos, em 2013, e já foi eleito para um mandato de mais seis anos, totalizando 11. Passando a régua no poder bolivariano, se não houver impedimento, Chaves e Maduro governarão a Venezuela por 25 anos, sempre exorcizando todos os demônios que infelicitam a nação. Eis a raiz do desalento do povo venezuelano que hoje vive no relento de Pacaraima.  

Do lado de cá da fronteira, após o golpe militar, o Brasil que emergiu democrático, em 1985, proclamou uma constituinte em 1988 que previa a alternância no poder, com o mandato presidencial de quatro anos, sem direito à prorrogação. Em 1997, ao sabor das conveniências de quem detinha o poder, surgiu o advento da reeleição. A partir daí, partidos políticos aparelharam o estado com projetos políticos que mesclam benefícios para o povo e a indispensável perpetuação no poder. Na eleição deste ano, ideologias à moda venezuelana, que defendem “um regime autoritário para por a casa em ordem”, estão bem representadas. Segundo as últimas pesquisas, os messiânicos da pátria amada têm boas chances de vitória na corrida eleitoral, tanto no Executivo quanto no parlamento. 

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