O "off" do nascimento

O "off" do nascimento

Na narração em “off”, a imagem do locutor não aparece. Além de servir para destrinchar as cenas e dar um sentido à história, essa forma de narrativa auxilia ou induz a compreensão do espectador. O diretor José Padilha explorou essa técnica para unir os fragmentos da realidade brasileira, retratados nas reportagens de TV e mesclados no inquiridor Tropa de Elite 2.

A priori, as distorções gritantes da sociedade brasileira não são difíceis de entender. Há uma lógica perversa que envolve políticos desonestos, órgãos de segurança corrompidos, milícias violentas e a população indefesa das favelas. Para que todas essas histórias tenham liga, a narrativa do personagem principal descreve e, no fim, avalia os fatos.

Afinal, qual é o papel do agora tenente-coronel Nascimento? Seria o visceral personagem de Wagner Moura um oficial truculento que deliberadamente não cumpre sua função e permite uma carnificina dentro de Bangu I para que facções do tráfico se autoexterminem? Ou será que o coronel Nascimento encarna o herói solitário, um policial destemido disposto a combater por dentro a corrupção governamental e policial do sistema?

O DNA da política está na gênese da obra de José Padilha, de longe o mais politizado cineasta brasileiro em atividade. Sem os subterfúgios da autocensura, o diretor desnuda e vincula, de forma explícita, a corrupção dos órgãos de segurança ao sistema central, no caso desta real obra de ficção, o governo do Estado do Rio de Janeiro. Essa ousadia explica o sucesso do filme que conquistou a plateia. Hoje, a população brasileira acredita mais em salvadores messiânicos do que na força das instituições que a representam. Isso explica bem o alto ibope do presidente Lula.

A violência que tomou conta do Rio de Janeiro decorre da ligação direta que se estabeleceu entre o poder político e o poder de fogo do crime organizado. Tropa de Elite dispara o tempo todo contra a podridão desse sistema, sem compromissos ideológicos com a esquerda ou com a direita. Paladino incorruptível, se for preciso, atuando acima dos limites da lei, única esperança de redenção contra a crueldade do sistema, o tenente-coronel Nascimento encarna o herói nacional. No momento mais catártico do filme, desce o braço no político ficha-suja.

Bem, se o governador, se a imprensa sensacionalista, se os políticos corruptos e se as milícias não passam de usurpadores da população desprotegida das favelas, sobra quem para ajudar o tenente-coronel a vencer essa inglória luta contra o mal? Acertou quem lembrou do famoso Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar. No filme, o Bope vira o último guardião da moralidade brasileira, cujo símbolo é a faca espetada na caveira. Para que o mal não vença, sinal verde para o vale tudo, incluindo o saco plástico da tortura na cara do bandido ou o tiro à queima-roupa de fuzil no rosto do detento que baixou a arma para se entregar.

O epílogo chega “em off”, longe do ricochetear das balas, com a câmera aberta sobrevoando Brasília, em tom grave e bastante reflexivo. É dessa forma enigmática que o coronel Nascimento tece o seu veredito sobre a realidade fluminense e brasileira: metralha o Congresso Nacional, sugere que o indivíduo destemido pode vencer o sistema corrupto e passa, de forma bem sutil, uma mão de verniz na imagem do Bope, briosa e inatacável instituição, capaz de resgatar com o uso da força desmedida a legitimidade do Estado de direito. Vale a pena assistir ao Tropa de Elite 2, prestando muita atenção na cinematográfica narração, em off, do coronel Roberto Nascimento.

Compartilhar: