O estado do mal-estar

O estado do mal-estar

“Nau à deriva
No asfalto ou em alto mar
Perigo, perigo Perdidos no espaço sideral
Apocalipse now
À deriva”

A música dos Engenheiros do Hawaii, lançada em 1989, encaixa-se como uma luva na atual conjuntura política brasileira. Políticos, analistas, partidos e a própria sociedade estão à deriva num mar de incertezas. Nem o octogenário Fernando Henrique Cardoso (FHC) sabe o que acontecerá com o país. Sociólogo reconhecido por renomadas universidades internacionais cuja fé em Deus foi posta à prova em debate eleitoral pela Prefeitura de São Paulo, em 1985, coerente com sua formação, FHC afirmou que na vida não há predestinação. Portanto, em relação ao desdobramento da crise nacional, não há outro caminho, o futuro precisa ser construído.

Fernando Henrique Cardoso lançou um livro sobre os dois primeiros anos de seu governo. “Diários da Presidência” contém 930 páginas sobre as gravações cotidianas de FHC em 1995 e 1996. Para evitar uma distorcida interpretação das suas manifestações, apenas pelo viés político-partidário, FHC deixou claro que, aos 84 anos, não é mais candidato a nada, sem negar a sua notória vinculação com o PSDB. A mídia nacional reconheceu a importância do depoimento de alguém, que em vida, decidiu expor algumas frestas sobre os meandros do poder para ajudar na compreensão do momento atual. A vinculação política do ex-presidente não invalida o seu depoimento de testemunha ocular da história. Nas entrevistas que deu à revista Veja, à Folha de São Paulo, ao Estadão e a outros veículos FHC também teve que responder pelos escândalos que rondaram seu governo: as acusações de compra de voto para a reeleição, a privatização das estatais por preços baixos, o programa de ajuda aos bancos (PROER), as doações ilegais de campanha, (a pasta rosa mantida pelo falido dono do Banco Econômico, Ângelo Calmon de Sá) e a suspeita concorrência da empresa Raytheon para a instalação do Sistema de Vigilância da Amazônia (o famoso Sivam), entre outras irregularidades.

Na longa e dispersa entrevista concedida ao programa Roda Viva, em que os jornalistas pulverizam temas que deveriam ser aprofundados com um número excessivo de perguntas, FHC, por várias vezes, foi instado a apontar saídas para crise. Chamado de vaidoso, o ex-presidente teve humildade suficiente para reconhecer que não sabe qual o caminho que o país deve trilhar e que não tem mais poder de influência, pois não ocupa nenhum cargo institucional. Observou que as pessoas precisam de mais informação, que há uma distância muito grande entre a representação política e a sociedade, hoje não mais dividida em classes sociais. As mudanças impostas, principalmente pelo desenvolvimento tecnológico, segmentaram as camadas da população que não são representadas pelos 34 partidos políticos legalizados no país. Para FHC, a ira da sociedade com o Congresso Nacional não resolve o problema e nem serve para terceirizar a culpa. “Todos os políticos que estão no Congresso Nacional foram eleitos por nós”, resumiu FHC. 

Numa leitura mais superficial, a crise que salta aos olhos coloca o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff na ordem do dia. No entanto, a análise mais crítica precisa trazer à tona a falência do estado brasileiro e as relações corrompidas que se estabeleceram, nas últimas décadas, entre o público e o privado. Na modernidade política, esse processo começou na ditadura, permeou sucessivos governos civis desde 1984, mas se consolidou nos governos do PT.

Desde que o Partido dos Trabalhadores venceu as últimas quatro eleições, vigora a visão de poder de um partido que se considera hegemônico e o único capaz de comandar o país para alcançar o estado do bem-estar social, denominado pelos colegas de Fernando Henrique como “welfare state”. Por essa visão, o estado torna-se o principal condutor e interventor da economia para prover a sociedade das suas necessidades. Nesse processo, invariavelmente, o partido aparelha o Estado colocando em prática a máxima em que os fins (a permanência no poder) justificam os meios. O comportamento do PT no controle do estado, bastante antagônico às proposições da época da fundação, não configuram nenhuma inovação histórica. Os bolcheviques, no começo do século passado, mataram milhões de pessoas na extinta União Soviética, em nome de uma sociedade mais justa, para permanecerem no poder a qualquer preço. Os principais dirigentes do PT já estiveram presos ou respondem a graves acusações de corrupção. Agora, as denúncias também se estendem aos familiares. Independentemente da reorganização do sistema político e da solução para o problema da governabilidade, a sociedade precisa reencontrar caminhos para retomar o controle do Estado. Caso contrário, os governos passarão e o mal-estar provocado pelo Estado aparelhado persistirá “ad seculorum” tolhendo a vida do cidadão. 

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