
O exílio do deputado
Até o anúncio da renúncia do deputado federal reeleito Jean Wyllys (PSOL) imaginava-se que a fase mais sombria e obscura da política havia ficado para trás. O período republicano brasileiro ainda é muito jovem perto de nações mais antigas. Tem só 130 anos, mas já passou por várias crises, ditaduras, revoluções e janelas democráticas. A última ruptura foi em 1964, quando uma expressiva leva de brasileiros deixou o país. A normalidade democrática voltou com a constituição de 1988. Nesse período de triste memória, muita gente morreu por conta das convicções políticas ou teve que rumar para o exílio. A lista de banidos foi grande, incluindo políticos, artistas e intelectuais: Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, Miguel Arraes, José Serra, João Goulart, Leonel Brizola, Paulo Freire, Chico Buarque e Caetano Veloso foram embora do Brasil, acusados de serem “subversivos” ou “comunistas.” Pela sua libertária Tropicália, Gilberto Gil chegou a ser torturado numa delegacia do Rio de Janeiro. Só um baiano muito bem humorado ainda seria capaz de um toque de letra para ironizar os torturadores. “Alô, alô Realengo, aquele abraço”.
Desde que a anistia foi promulgada em 1979, todos os exilados retornaram ao Brasil e retomaram às carreiras profissionais. Os que voltaram à política receberam votações consagradoras. A partir daí, com seus altos e baixos, a vida política brasileira retomou a relativa estabilidade democrática até os dias de hoje. Nesses últimos 30 anos, políticos de todos os matizes foram eleitos, da extrema direita à extrema esquerda. Todos tomaram posse para defender suas ideias e os eleitores que representam. Esse Estado de direito, que garante a liberdade de expressão, sofreu grave ameaça em março do ano passado, quando a vereadora Marielle Franco foi executada a tiros por desafiar o poder das milícias do Rio de Janeiro. Na última eleição, o presidente Jair Bolsonaro sofreu um atentado. Embora muitas teorias conspiratórias circulem na internet, as investigações não conseguiram descobrir quem matou Marielle e concluíram que Adélio Bispo foi o responsável pelo ataque ao presidente.
Em mais de três décadas, esta é a primeira vez que um deputado brasileiro renuncia com medo de morrer. Um pouco antes de tomar posse para o terceiro mandato, Jean Wyllys abriu mão do cargo em função das ameaças que vem recebendo e que estão sendo investigadas pela Polícia Federal. Depois de ganhar notoriedade pela participação no Big Brother Brasil, se elegeu em 2010 e foi reeleito pelo Rio de Janeiro, tornando-se o único deputado federal assumidamente homossexual da atual legislatura. Jornalista de formação foi um dos autores dos projetos de leis que visavam à revogação de artigos do Código Civil que regulamentavam o casamento para que houvesse o reconhecimento do casamento civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Também defendeu a regulação da atividade dos profissionais do sexo. Em 2016, na votação do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, Jean Wyllys cuspiu no então deputado Jair Bolsonaro, ato que fere o decoro parlamentar na Câmara dos Deputados e que poderia resultar em cassação. O Conselho de Ética aplicou uma advertência por escrito ao deputado.
Jean Wyllys também foi alvo da grosseira onda de fake news que transformou a sua homossexualidade assumida na criminosa pedofilia. Também é apresentado como o autor do famoso “kit gay” cujo vínculo nunca foi comprovado. Suas ideias também foram objeto de distorções agressivas e sua reputação foi destruída pela boataria. Nos últimos tempos, o deputado também foi alvo de atitudes hostis, mesmo sendo protegido por uma escolta policial. Relata que passou a receber empurrões e cotoveladas nas ruas. Como sua família também foi ameaçada, decidiu se retirar da política e viver fora do país, pois considerou iminente o risco de morte. Como deve ocorrer em países civilizados, a decisão recebeu a solidariedade das autoridades, enquanto alguns segmentos comemoraram a exclusão do deputado do PSOL. No tiroteio de manifestações preconceituosas e sensatas, uma declaração lúcida apareceu na voz do vice-presidente, o polêmico general Hamilton Mourão. “Esse deputado foi escolhido como representante de uma parcela dos brasileiros. Portanto, ele tem o direito de defender suas ideias. Quem gosta bate palma, que não concorda pode ignorar o que ele propõe. Quando se impede um deputado de expressar suas ideias, quem perde é a democracia”.
Quem compartilha desse pensamento sabe que a oposição de ontem é o governo de hoje. Na alternância de poder, quem comandava o país ontem, hoje está na oposição. Se a política de caça às bruxas voltar, quem será a vítima de amanhã? Não se combate ideias com a eliminação física dos antagonistas. O racismo, o nazismo, fascismo, o comunismo e tantas outras doutrinas autoritárias e violentas tentaram fazer isso e perderam. Um olhar abrangente, pairando sobre a longevidade da história, constata que as ideias civilizadas superam os pensamentos mais retrógrados. Mais dia menos dia, a postura intolerante acaba caindo de maduro. Foi assim que Mandela derrotou o racismo na África do Sul. No lugar de Jean Wyllys, quem vai assumir a vaga é o vereador do Rio de Janeiro David Miranda, igualmente filiado ao PSOL e também homossexual assumido.