
O livro da escravidão
Já faz algum tempo que o Roda Viva da TV Cultura se apresenta como um oásis de conteúdo relevante, algo cada vez mais raro de se encontrar na televisão brasileira. Recentemente, sob a nova direção, trocou de apresentador, mudou de cenário e renovou a lista de entrevistados e entrevistadores. O programa se caracteriza pelo longo de tempo de duração, em torno de uma hora e meia, o que permite o aprofundamento de alguns temas, espaço difícil de conseguir nos segundos sempre escassos da televisão. Entre os últimos entrevistados do Roda Viva estiveram no centro da cadeira giratória; o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, o ex-presidente da República, Michel Temer, o deputado federal (SP), Alexandre Frota, a deputada estadual (SP) Janaína Paschoal e o escritor israelense, autor do livro — Uma Breve História da Humanidade — Yuval Noah Harari.
Na sequência dessa lista de convidados, o programa entrevistou o jornalista e escritor Laurentino Gomes que se tornou nacionalmente conhecido pela trilogia das datas emblemáticas da história do Brasil; 1808, que conta a chegada da família real ao Brasil, 1822, a declaração da independência e 1889 sobre a proclamação da República. Juntas, as três obras no Brasil, em Portugal e nos Estados Unidos venderam 2,5 milhões de exemplares. Paranaense de Maringá, em parceria com Osmar Ludovico, Laurentino Gomes também é autor de “O Caminho do Peregrino; Seguindo os passos de Jejus na Terra Santa”. Nas suas entrevistas para explicar o sucesso que obteve com a venda dos livros, o escritor diz que não se considera um historiador, mas alguém que reconta a história do Brasil com um olhar de jornalista e uma narrativa fluente, que facilita a compreensão e a leitura. Laurentino recebeu de bom grado a crítica que o historiador José Murilo de Carvalho fez às suas obras. “Os livros do Laurentino não trazem nada de novo sobre a história do Brasil, mas suas publicações têm o grande mérito de contar a história de uma maneira que desperta o interesse dos leitores”.
Além desse reconhecimento que obteve com os três primeiros livros, o jornalista esteve no programa por conta do novo sucesso editorial que já está nas livrarias. Será mais uma trilogia, desta vez sobre um tema candente, uma pauta cada vez mais presente nos debates sobre os caminhos e os descaminhos do Brasil. Para escrever “Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares”, o escritor pesquisou o tema durante seis anos, entrevistou especialistas em racismo e fez oito viagens a países da África e da Europa. Durante a entrevista, por várias vezes, afirmou que a escravidão é o assunto mais importante da história do país. “O Brasil finge que é uma democracia racial e que o preconceito não existe. Somos um país profundamente racista e isso está na base da desigualdade social e econômica. Tanto as estatísticas quanto o simples olhar por locais públicos, universidades, shoppings e elevadores sociais e de serviço revelam essa posição de inferioridade que os negros estão confinados há séculos. A discussão sobre o racismo é uma pauta estratégica que veio para ficar. Não alcançaremos o status de nação desenvolvida sem resolver o problema da desigualdade dos negros no país”, analisou o escritor.
Apesar de ter sido o maior território escravista do hemisfério ocidental, o Brasil não tem nenhum museu nacional sobre a escravidão. Recebeu cerca de 5 milhões de escravos durante 350 anos, foi a nação que mais tempo resistiu para acabar com o tráfico negreiro e a última a abolir a escravatura em 1888. Logo na introdução do livro, o jornalista apresenta números que retratam essa desigualdade oriunda da escravatura e que permanece até hoje. "Cerca de 54% da população brasileira são negros e pardos; o índice de analfabetismo entre os negros em 2016 era 9,9%, mais do que o dobro do índice entre os brancos; um homem negro tem oito vezes mais chances de ser vítima de homicídio no Brasil; nas quinhentas maiores empresas que operam no país, apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência são ocupados por negros". Esses números são suficientes para explicar porque ocorrem tantas manifestações racistas nas ruas, nos estádios de futebol, nos supermercados e até em exposições no Congresso Nacional.
A escravidão foi praticada em vários períodos da história da humanidade, mas no Brasil o povo africano foi subjugado com base no nascimento de uma ideologia racista que contou inclusive com o aval da Igreja, que durante um longo período da história era proprietária de negros. A escravidão brasileira se tornou a base do desenvolvimento econômico. No passado recente, esse legado racista e preconceituoso ganhou visibilidade e força nas redes sociais e nos discursos de políticos e de notórios representantes da elite. Na sua visão, Laurentino enfatiza um abismo de oportunidades, de direitos, de privilégios, de benefícios entre a população branca e negra. “A escravidão é uma ferida aberta. Criamos vários mitos como se o Brasil fosse uma democracia racial. O Brasil realmente explorou e moeu sua população afrodescendente, e depois, jogou fora como se fosse um bagaço”, observa o escritor que menciona alguns avanços como a política de cotas nas universidades e uma crescente tomada de consciência de parte da população.