
O náufrago de um mundo
O dia a dia está cada vez mais corrido. A agenda, cada vez mais apertada, não deixa muito tempo para respirar ou para ficar pensando sobre o significado de cada notícia. Uma avalanche de informações desce a montanha das redes sociais, do e-mail e dos sites especializados. Há uma predileção mórbida pelas tragédias que se sucedem. De repente, para tudo! Uma imagem, entre milhões que circulam pela rede, congela a espinha do espectador. A foto remete o internauta à sua condição humana mais primitiva e mais relegada em tempos em que impera a filosofia do cada um por si. Para viver melhor, esquecemos que fazemos parte de um mesmo mundo, de uma mesma irmandade, mesmo que ela esteja ficando menos fraterna. Para complicar essa relação entre a realidade e a consciência, ao mesmo tempo, estamos bem juntos e muito separados, em lugares próximos e para lá de distantes. Alheios e preocupados, somos indiferentes e solidários com desconhecidos. Basta um click para que a distância entre o Brasil e a Síria, entre a Turquia e uma ilha grega, desapareça completamente.
Antes de levar um tiro, John Lennon chegou a sonhar com uma humanidade contaminada por um espírito mais fraterno. Chegou a imaginar um mundo sem fronteiras, sem a geográfica divisão por países, onde a condição humana e não o território ou a raça seriam determinantes para o relacionamento entre os povos e as pessoas. Claro que essa utopia não prosperou, tudo não passou de um sonho. Os descaminhos da modernidade conduziram à individualidade exacerbada. Hoje, já é possível fazer quase tudo sozinho com um celular, com um aplicativo e a conexão à internet. Esse conflito está cada vez mais presente nessa diversificada rede de indivíduos que vivem solitariamente, conectados a mundos distantes, sem perceber ou entender a sua própria condição humana.O mundo dos homens racionais sempre se revelou pródigo em produzir imagens horrorosas. A foto da menina queimada por napalm, fugindo da guerra do Vietnã, já tem mais de 40 anos, mas a animalidade humana está sempre atualizada. Do nada, ela reaparece com a sua face mais sinistra na ponta da tesoura que mata a assistente social que dedicou a vida à caridade. Agora, o drama anunciado ganha forma de tragédia mundial na foto do menino sírio, que depois de engolido pelo mar foi expelido pelo Mediterrâneo até a beira da praia. A foto chocante escancara sem palavras a monstruosa irracionalidade humana. É como se o mar inocente, que lambe o corpo estirado na areia, gritasse alto com o barulho das ondas: peguem de volta e enterrem com dignidade o filho que vocês não souberam cuidar!
A foto sem rosto torna o garoto um filho do mundo, um cidadão universal sem pátria ou bandeira: poderia ser eu, poderia ser você, poderia ser um filho seu ou um ente querido meu. Na verdade, isso pouco importa. Dizem que a solidariedade nos torna humanos, pois até o mais selvagem dos animais protege a própria espécie. A dignidade humana naufragou numa praia da Turquia, afundando consigo a civilidade de nações, os discursos dos líderes mundiais e as regras da diplomacia internacional.
Na estreita estrada que separa o particular do sentido universal, a imagem que correu o mundo a todos nós representa. O menino que morreu na praia, Aylan Kurdi, de apenas três anos, era Sírio, uma inocente vítima de uma insana guerra civil, que a racionalidade humana tem dificuldades para explicar. A reflexão emudece e faz brotar o sentimento de impotência e de indignação. O grito do garoto morto ecoou mundo afora. Quando os homens não conseguem resolver as mais elementares questões de convivência, a melhor alternativa é pensar que nada temos a ver com elas para que cada um siga tocando a própria vida, sem dor e sem pena, enfim, sem maiores dramas de consciência. Para tristeza geral, o sentimento provocado pela imagem da fotógrafa turca, Nilüfer Demir, deixa um aperto no coração e prova justamente o contrário. A essência do sentimento humano ainda faz com que sejamos tocados pela absurda morte de um garoto desconhecido.