
O país que emerge da crise
Não há outro assunto. Tal qual a inseparável e cultural mistura do feijão com o arroz, há vários meses, no cardápio das discussões estão a crise política e a econômica. Os temas se arrastam há muito tempo e já são estressantes. No meio do turbilhão diário de notícias, nem mesmo o cidadão mais atento sabe ao certo quem nasceu primeiro. Foi a deterioração da economia, com a despencada gradual e consecutiva de todos os indicadores econômicos — renda, geração de empregos e aumento de inflação — que impulsionou a crise política ou foi a fragilidade do sistema político e o financiamento ilícito que jogou o país na recessão e na paralisia geral?
Difícil encontrar um setor ou uma empresa que não esteja sentindo os efeitos da crise, desde a indústria de bebidas, de alimentação ou mesmo de lazer. Esses dias, o Globo Repórter fez uma descoberta e revelou que a indústria ligada ao sexo e ao erotismo continua crescendo 20% ao ano. Talvez essa exceção exista justamente para tornar verídico aquele velho adágio dos economistas e dos consultores. Esses profissionais afirmam, categoricamente, que grandes oportunidades surgem em momentos de dificuldades. Para quem vende passagens de avião ou balas na esquina, esses quatro primeiros meses de 2016 foram de medo, ansiedade, perplexidade, contemplação, expectativa e esperança.
Quando se avalia a conjuntura política e econômica, destaca-se o funcionamento das instituições brasileiras. Esse é um fator positivo do momento atual. Não existe hoje no país um salvador da pátria, um herói nacional no qual todos estejam depositando as esperanças de dias melhores. As mudanças que ocorreram até agora, e não foram poucas, resultam de um processo que veio de baixo para cima. As manifestações de ruas sacudiram as estruturas políticas e colocaram o governo na defensiva. O país tenta resolver a crise com o poder de decisão e de influência dividido entre várias instituições. A votação do impeachment desnudou ao país o baixo nível do perfil dos parlamentares que compõem a Câmara dos Deputados. Numa jogada de xadrez, o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou o deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados, algo que a própria Câmara não conseguia fazer. A saída de Cunha revelou ao país um político de calibre rasteiro como Valdir Maranhão, que em menos de 24 horas fez e desfez uma insanidade.
Nunca se prendeu tanta gente que apostava na impunidade eterna. Nunca foram publicadas na imprensa tantas denúncias, a ponto de dezenas de pessoas envolvidas em ilícitos confessarem os crimes para atenuar penas. No Brasil da faxina em curso, a Polícia Federal, o Ministério Público e a Procuradoria Geral da República colocaram a elite política e econômica na alça de mira. No dia em que Valdir Maranhão deu a sua famosa canetada, a segunda maior construtora do país, a Andrade Gutierrez, fechou um acordo de leniência com a Procuradoria-Geral da República (PGR). A empreiteira terá que pagar uma multa civil de R$ 1 bilhão para ressarcir o prejuízo da Petrobras. Não duvide, é um bilhão mesmo. Nesse mesmo fatídico dia, o ex-poderoso, Guido Mantega, ministro da Fazenda de 2006 a 2015, foi conduzido à força para depor na operação Zelotes.
Embora alguns possam sobreviver, a política nunca mais será a mesma para uma extensa lista de políticos do governo e da oposição. Encabeçam essa lista, Dilma Rousseff, o ex-presidente Lula, o senador Aécio Neves e o cassado Delcídio do Amaral, todos na sombra da lava-jato. Já foram encarcerados ou correm o risco, o deputado Eduardo Cunha, os maiores empresários da construção civil, mais um ônibus lotado do segundo escalão onde estão sentados intermediários da propina, como Paulo Roberto Costa, Renato Duque, Nestor Cerveró, João Vaccari Neto e Jorge Luiz Zelada. Tem muita gente que se quiser ir à praia terá de ir de calça comprimida para esconder a tornozeleira. A lista de enrolados ainda tem figuras eminentes como Carlos Sampaio (PSDB), Edinho Silva (PT) e Ciro Nogueira (PP). Tanto à esquerda quanto à direita, quem cospe na democracia ou defende a tortura pode perder o mandato. Que o digam os deputados Jean Wyllys e Jair Bolsonaro. Na mira da Procuradoria da República, a senadora Gleise Hoffmann deve estar tomando algo para dormir. Na base dessa mudança, estão as manifestações de rua, as denúncias da imprensa, as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público. Até a Suprema Corte foi obrigada a se mexer. Se a situação econômica vai de mal a pior, a crise atual, pelo menos, serviu para mostrar que a opinião pública tem força suficiente para abalar e mudar a estrutura do poder. Tomara que a faxina esteja só começando.