
O pampa de "O Tempo e o Vento"
O amor que não sucumbe ao tempo e à distância. A solidão que vai e volta no decorrer da vida. A arte de saber esperar e a saga das mulheres que pariram gerações. A vida romanceada em guerras que nunca acabam. Tudo isso está no filme “O Tempo e o Vento”, baseado na obra do escritor Érico Verissimo. A necessidade de lutar para defender a própria terra à unha fez com que o gaúcho desenvolvesse uma relação muito particular com o seu habitat, envolvendo a comida, as roupas e o modo de falar. Os hábitos e os costumes estão diretamente relacionados ao inverno rigoroso. Essa cultura se consolidou nos longos períodos de guerra em que havia risco de vida para quem quisesse entrar ou sair da província. Cercado pelas hostilidades dos vizinhos da prata e pelas intermináveis disputas entre Portugal e Espanha, o gaúcho introduziu no dicionário o significado do verbo pelear. Além das constantes escaramuças com os castelhanos na fronteira, a Revolução Farroupilha (1835 – 1845) foi uma das mais longas peleias da história do Brasil.
O livro “O Tempo e o Vento” com seus 200 anos de história, divididos nos sete volumes do Continente, do Retrato e do Arquipélago, conferiram um caráter universal a uma história cheia de particularidades. Certamente, foi essa a grande façanha de escritores como Érico Verissimo, Jorge Amado e Guimarães Rosa: conseguiram universalizar as temáticas regionais do Sertão e do Pampa. Por sinal, as imagens do pampa merecem um registro especial no filme de Jayme Monjardim, em exibição nos cinemas de Ribeirão Preto. A saga das famílias Amaral e Terra-Cambará está lá, bem contada pela visão saudosista de Bibiana, interpretada por Fernanda Montenegro. Tiago Lacerda personificou o capitão Rodrigo e gostou tanto do Pampa que acabou arrendando um pedacinho de chão em Bagé, cidade em que foi feita a maior parte das filmagens.
As imagens do pampa, bioma que ocupa mais da metade do território gaúcho, predominam na fotografia do filme. Descontadas as diferenças fronteiriças, o Pampa aproxima o Rio Grande do Sul do Uruguai e das províncias Argentinas de Buenos Aires, La Pampa, Santa Fé, Córdoba, Entre Ríos e Corrientes. As lentes do diretor captaram o espetáculo do pôr do sol no pampa que encerra um significado especial na alma do gaúcho. Para apreciar esta beleza, o primeiro ingrediente é justamente o tempo. O vivente não pode estar afoito, pois corre o risco de passar atropelado pelos raios multicoloridos que se misturam no horizonte. Os dias no hemisfério sul são mais longos e, diariamente, parece que o Sol se despede sem muita pressa. Este espetáculo da natureza inquieta a alma humana. Quase sempre, o vento também está presente neste derradeiro momento do dia. Assovia rasteiro, esgueirando-se pelo meio da vegetação como se estivesse varrendo o presente para o passado. Solito neste cenário, o taura não tem como fugir de si mesmo, dos próprios pensamentos que tomam conta da alma. Por alguns instantes, fica lançado pela solidão e pela nostalgia. Neste rápido e singelo momento de contemplação, experimenta sentimentos distintos e até antagônicos que se misturam. Tem a tristeza de um dia que finda com o pôr do sol e a alegria que renasce com o novo amanhecer.
Moradores destas paragens não devem saber desta surda contenda. No Rio Grande do Sul, sem exceção, cada uma das 545 cidades do Estado reivindica para si a representação de um naco desta beleza pampeana. A disputa é mais renhida na fronteira onde estão Uruguaiana, Livramento, Alegrete, Bagé e outras tantas cidades. Nessa região, as matizes e a gênese do pampa parecem mais nítidas. Para registrar no cinema essa fotografia, Jayme Monjardim gravou os casarões em Pelotas e filmou o pampa nos campos de Bagé. E eu já ia terminando este texto esquecendo de uma informação muito importante. Por uma grata e especial deferência do destino, Bagé foi a cidade em que nasci.
Murilo Pinheiro
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