
O parlamentarismo do impeachment
Em um fatídico 24 de agosto de 1954, antes de se matar, o ex-presidente Getúlio Vargas escreveu uma carta em que defendia o legado de seu governo e atacava os inimigos a quem chamava de aves de rapina. Sessenta e um anos depois, o vice-presidente da República, Michel Temer escreveu uma carta aberta à presidente da República, companheira de chapa, em tom de desabafo. Temer declarou publicamente que durante cinco anos foi tratado com desprezo por Dilma Rousseff e que seu papel no governo era meramente decorativo. Mas vem cá Michel! Se você só era chamado para discutir questões secundárias e apagar os incêndios das crises, por que aguentou tanto tempo calado? Por que não se rebelou antes? Por que repetiu o martírio dessa dobradinha na última eleição presidencial?
O tom da carta que o vice-presidente escreveu transbordava de mágoas, tal qual o cônjuge traído. Engasgado com as últimas declarações de Dilma, Temer afirmou que o manifesto deveria ter sido escrito há muito tempo. Disse que nunca teve o reconhecimento e a confiança da presidente. Para registrar isso de forma pública, listou 11 episódios em que foi desprestigiado, entre eles, a descortesia de não ser chamado para um encontro com o vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, com o qual mantinha uma relação próxima. Lembrou que a aliança com o PT para a sucessão presidencial, de 2014, foi aprovada na convenção do partido com o estreito apoio de 59% dos filiados. Temer, que preside esse PMDB rachado ao meio há mais de uma década, lembrou que essa aliança só foi mantida porque ele era o vice.
Em momentos de crise institucional há que se ter muito cuidado na hora de abraçar causas, alianças e personagens. Os fins não justificam os meios. Também não se pode olvidar do velho provérbio religioso: “diga-me com quem andas e te direi que és”. Assim, não se trata de canonizar Michel Temer ou colocar o vice na posição de vítima em relação à desastrosa gestão do atual governo. O PMDB também tem responsabilidade sobre o aparelhamento do Estado iniciado em 2002. Nas quatro vitórias presidenciais do PT, lá estava o PMDB de olho no usufruto da máquina pública.
Analistas políticos e membros do próprio PT avaliam que o maior erro político da presidente Dilma foi manter o PMDB à margem do governo. Essa relação desgastada sem uma base mais sólida, agora poderá ser decisiva na discussão do processo de impeachment sobre o qual sobram argumentos e teses de ambos os lados. Os governistas dizem que se trata de um golpe contra a democracia, os oposicionistas afirmam que a impugnação da presidente está prevista na constituição. Enquanto PT brada que o movimento pela cassação configura um ato revanchista pela derrota na última eleição, o PSDB rebate lembrando que quando o PT era oposição protocolou no Congresso Nacional mais de 30 pedidos de impeachment contra os ex-presidentes Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
Dirigentes petistas que estão ou estiveram presos, casos de José Dirceu e José Genoíno, lideram esses movimentos. Argumentando que essa discussão paralisa o país, o governo quer votar logo a questão assim que tiver o controle absoluto das comissões. A oposição sabe que o governo quer acelerar a definição do processo para que não haja tempo de organizar as manifestações de rua que podem influenciar o voto dos congressistas. Dilma propôs a suspensão do recesso, temerosa de que a deterioração econômica complique ainda mais a sua sobrevivência. Já os agentes econômicos reagiram favoravelmente ao processo de cassação.
Mesmo que o impeachment seja um processo político, que transcorre no Poder Legislativo, as instituições do país, com ênfase à Justiça, decidirão soberanamente se há ou não há base jurídica para a cassação da presidente. No meio desse debate que divide e paralisa o país, um petista de carteirinha, o secretário de Governo, Ricardo Berzoini, projetou a solução do impasse. Salvo as manobras regimentais, para se livrar do impeachment, dos 513 votos dos deputados, por ironia do destino, a presidente Dilma precisa contar com o apoio de 171 parlamentares, um número muito significativo para o Código Penal Brasileiro. Berzoini avalia que se a base não tiver esse 1/3 dos deputados, o governo não tem mesmo condições de permanecer no poder. Assim, a votação do impeachment será uma espécie de parlamentarismo branco. A questão será decidida de forma democrática, cair ou não cair, eis uma questão que, em síntese, dependerá do voto.