
O pragmatismo de um tiro
O filme sobre a vida do mais polêmico e controvertido presidente da história do Brasil foi exibido em Ribeirão Preto para plateias pequenas, nada que se comparece ao público que assistiu ao Homem Aranha ou ao Capitão América. Também, já se passaram 60 anos desde que o “ditador”, “o pai dos pobres”, o “carismático Vargas”, chamado de “Dr. Getúlio” pelo povo transformou a própria morte no mais pragmático ato político da história do Brasil. Com o passar do tempo, embora esteja registrada, a história vai morrendo. Os fatos, cada vez mais distantes, perdem a significação e o interesse. Ficam restritos aos curiosos e aos que não desistem de conhecer bem o passado para compreender melhor o presente. Em uma sessão, no trágico momento em que o ex-presidente, Getúlio Vargas, pega o revólver no Palácio do Catete, uma espectadora atrapalhou a ética que deveria vigorar em uma sala de cinema com um comentário inoportuno: “será que ele vai se matar?”
Ao pôr fim a sua vida, Getúlio Vargas transformou a própria existência em uma peça da sua astuta estratégia política, tornando absolutamente factual e verídica a máxima que encerra a carta testamento. O emblemático “saio da vida para entrar na história” encarna um pragmatismo político que, hoje em dia, soa até meio esquisito. Alguém conhece um político atual fazendo algum sacrifício por uma causa qualquer? Afinal, na política pós-Getúlio, quase todos os dias se leem notícias sobre partidos e políticos que se vendem por alguns contos de réis. Com crises, discursos inflamados e as posições radicalizadas, a política no tempo do fazendeiro gaúcho era muito parecida com a atual. Encurralado pela verve da oratória do jornalista e candidato a deputado federal pela UDN, Carlos Lacerda, Getúlio foi traído por homens de sua base e viu na própria morte a única chance de se vingar dos inimigos mortais. Além do filme de João Jardim, com Tony Ramos, sem o sotaque gaúcho, no papel de Getúlio, uma elogiada trilogia de livros do jornalista Lira Neto resgata a convulsão social, a crise nacional e a conspiração que tomaram conta daquele fatídico agosto de 1954. O filme mostra os últimos 19 dias do líder da Revolução de 30 e começa justamente com a ruína do governo, no dia 5 de agosto, quando um atentado feriu Lacerda e matou um major da Aeronáutica.
Para terminar, sem tirar a graça para os que ainda vão assistir ao filme, dois causos ilustrativos sobre o pragmatismo dos políticos de outrora. Um era seguidor e outro opositor de Vargas. No Rio Grande do Sul, Getúlio era aliado do governador Borges de Medeiros, sucessor de Júlio de Castilhos e adepto das ideias positivistas de Augusto Comte que se propagaram pelos pampas do Brasil, do Uruguai e da Argentina. O pai do ex-governador Leonel Brizola era um adversário político de Borges de Medeiros e foi morto em uma emboscada, armada por seguidores de Borges de Medeiros. Aos 23 anos, quando se elegeu deputado estadual, Leonel Brizola admirava a habilidade política de Vargas, mas antes de se tornar seu seguidor precisou resolver essa questão política interna. Mesmo que indiretamente, Vargas contribuíra para a morte de seu pai. Quando morreu, em 2004, Brizola pediu para ser enterrado em São Borja, uma cidade do oeste gaúcho, onde também estavam enterrados Getúlio e João Goulart.
Quem mais sofreu nas mãos de Getúlio Vargas foi o comunista Luiz Carlos Prestes que teve sua mulher Olga Benário, o grande amor de sua vida, entregue aos nazistas, a mando de Getúlio, para ser morta em uma câmara de gás. Na era Vargas, Prestes ficou preso por nove anos. Em janeiro de 1950, na eleição presidencial, o PCB concluiu que a democracia teria mais chances com a vitória de Getúlio Vargas do que com o Brigadeiro Eduardo Gomes. O PCB decidiu apoiar Getúlio, mas a decisão do maior líder comunista era vital. Prestes deu uma resposta pragmática que surpreendeu companheiros e inimigos. “Não posso colocar meus dramas pessoais acima dos interesses do partido. Aceito apoiá-lo”. Pelo jeito, a política com princípios e pragmatismo partidário, escassos hoje em dia, também morreu naquela noite de 25 de agosto de 1954, quando Getúlio executou com precisão de um enxadrista profissional o seu solitário plano de alvejar o coração da política nacional.