O que interessa

O que interessa

Os matemáticos e os eruditos diriam que os efeitos de uma feira do livro são intangíveis e deletérios, mesmo que o evento tenha se redimensionado para se adaptar às circunstâncias da crise econômica. O interesse da maioria do público converge para os nomes de maior peso, mas entre os menos famosos há muita gente com conteúdo interessante. O professor, escritor e filósofo Mario Sergio Cortella é uma figura carimbada no evento literário de Ribeirão Preto, pois participou de várias edições desde a primeira até a décima sexta. Contudo, o próprio Cortella costuma citar a escritora Clarice Lispector para chamar a atenção para o poder fascinante que só o novo e o desconhecido provocam.

Cortella abriu a Feira do Livro com duas palestras, uma na companhia do jornalista especializado em educação Gilberto Dimestein e outra, sozinho. Muitas pessoas ficaram horas na fila e o Theatro Pedro II lotou nas duas conferências. Seria um equívoco conceitual escrever que esse prestígio todo é decorrente do dom da oratória, pois logo no começo da longa exposição, de uma hora e 30 minutos cronometrados pelo próprio palestrante, o professor se apressou em explicar, de forma didática, que as virtudes humanas não são dons divinos herdados de forma aleatória por algumas pessoas. Evidente que alguns seres são privilegiados. O velocista Usain Bolt veio ao mundo com pernas longas e uma envergadura apropriada para a corrida, mas certamente o jamaicano não seria o homem mais rápido do mundo se não tivesse se esforçado, estudado e treinado para elevar essa aptidão na sua potência máxima.

O que difere a informação descartável do conteúdo relevante reside na permanência desse conhecimento depois que a emoção passa e que o riso cessa. Cortella usou essa ideia para apresentar uma definição sobre o subjetivo conceito de arte. Com a entonação que enfatiza o final das palavras, afirmou que a assimilação da manifestação artística seria aquilo que alguém carrega consigo depois que a contemplação visual da obra se encerra. Segundo Cortella, aquilo que não me toca, que não me comove poderá ser descartado no momento seguinte. Aquilo que me diz respeito, que desperta o meu interesse, que interfere na minha essência e que impacta o meu modo de pensar, esse será um conhecimento consistente que passará a fazer parte da minha vida. “O conhecimento não é algo de natureza automática, não é um dom divino. É preciso a oportunidade de acesso e a capacidade de captar aquilo que se torna próprio”, afirmou o palestrante.

Na visão de Cortella, essa diferença profunda entre a informação superficial, esquecível, e a profundidade do conhecimento inesquecível tem um peso significativo. O filósofo homenageado pela Feira do Livro chama esse processo de pré-ocupação, ou seja, a definição prévia que o indivíduo faz dos temas, das suas preferências, dos assuntos que farão parte da sua vida. Esse campo vasto abrange, sem exceção, todas as faces da vida, do cardápio alimentar à escolha da profissão, da música à navegação na internet.

Com a experiência de quem enfrenta as salas de aula há 35 anos, Cortella observou que essa deveria ser a principal preocupação dos educadores que querem obter êxito na sua atividade: conhecer em profundidade o universo  dos estudantes para fazer a ponte do conhecimento, sem nunca deixar de questionar a utilidade e a serventia do conteúdo. Para as pessoas, o conselho do filósofo segue esse mesmo raciocínio. Não se pode consumir tudo sem critério. No restaurante self-service, não dá para colocar no prato, ao mesmo tempo, salmão, frango e carne. Na internet, não se pode navegar em qualquer onda sob pena de afundar na futilidade e na inconse-
quência. Idem para as redes sociais. Para se alimentar, para navegar na internet ou para escolher as áreas de interesse da própria vida, o ser humano precisa ser seletivo, pois a evolução, ao contrário do que muitos imaginam, não se apresenta como predeterminação divina. A consciência e a afinidade com as próprias escolhas são resultados de um esforço deliberado, planejado, crítico e direcionado para separar no dia a dia a informação meramente descartável do conhecimento que será útil e valioso para a própria vida. 

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