O racismo e o tempo das cavernas

O racismo e o tempo das cavernas

Pura ironia do destino. Justamente no ano em que, teoricamente, o país experimentaria um clima de festa por conta do grande evento esportivo, o tempo fechou bem antes de a bola rolar. Por todas as regiões do país proliferam os bulícios, sinais de ruptura, que colocam a democracia em xeque. Nada que se compare ao que ocorre na Ucrânia, mas no semestre que se avizinha haverá confrontos raciais, de classe e até de opção sexual. Desde o começo do ano, esse cenário sombrio vem sendo armado por desumanidades, atos de crueldade e as atrocidades que, surpreendentemente, já não impactam tanto a opinião pública. A incompetência do poder público, o pouco caso das autoridades, produziu um sentimento de impaciência quase generalizado, uma insatisfação popular, um ar de desesperança que criou um clima de revanche camuflado que explode nos mínimos conflitos cotidianos. Ônibus queimados, explosões e crimes violentos sepultaram a paz urbana. A cereja desse bolo azedo da intolerância foi a reviravolta ocorrida no Supremo Tribunal Federal (STF), que absolveu os chefes do mensalão do crime de formação de quadrilha.

Ah sim, o povo anda nervoso e não vai adiantar ir pescar. Vejam quantos linchamentos, saques, quebra-quebra e uma infinidade de desditas. Aquela auréola de povo pacato, do país tropical com clima civilizado, está virando lenda. Não há risco de retrocesso cultural e de comportamento, pois ele já ocorreu. A sociedade atual já deu alguns passos em direção ao tempo das cavernas. Basta observar o trânsito ou antever o teatro de consequências imprevisíveis que está sendo ensaiado para junho e julho. A plateia será internacional. Depois do Carnaval, a última máscara que caiu foi a da democracia racial.  As demonstrações que ocorreram nos campos de futebol trouxeram à tona um preconceito que permanece arraigado 126 anos depois da abolição da escravatura. Debaixo do esgarçado manto da democracia racial, esconde-se uma sociedade aristocrática, que segrega e que, quando a Justiça e a Polícia não interferem, até escraviza. No jogo em Bento Gonçalves, os torcedores ofenderam e colocaram bananas no carro do juiz. Na industrializada Mogi Mirim, as ofensas racistas atingiram o jogador Arouca do Santos. Essas luzes iluminaram o racismo, mas o preconceito do dia a dia permanece ofuscado. No futebol, sempre monitorado por muitas câmeras, não dá para esconder o racismo.

Para constatar a discriminação racial e econômica, basta pedir para ver o álbum de fotos da sociedade atual. A cor branca predomina nas profissões bem remuneradas, no público dos shoppings, nas universidades, nos condomínios de melhor padrão e nos consumidores de maior poder aquisitivo. A criação de cotas nas universidades foi um passo importante em busca da democracia racial e econômica, mas só isso não basta.  A intolerância e o preconceito secular são bem mais difíceis de superar, estão arraigados na formação cultural do brasileiro, paradoxalmente, um dos povos mais miscigenados do mundo. O comportamento racista de expressivas parcelas da sociedade que, oficialmente, declara-se sem preconceito, hoje, precisa ser analisado em um contexto que abarca a revisão das regras de convivência no espaço urbano. Como solucionar o crescimento da intolerância contra os negros e a violência que desanca as mulheres? O que fazer para conter a discriminação que mata os homossexuais? Qual a razão do ódio fatal entre torcedores adversários? A sociedade não pode aceitar o desrespeito criminoso com os idosos.

Está cada vez mais difícil encontrar alguém disposto a se comprazer no trânsito ou nas empresas. Não se pode aceitar pacificamente a caducidade das boas maneiras e das exemplares lições da escola. A reviravolta desse quadro passa pela reorganização do processo educativo, mas não depende só das instâncias públicas. O exemplo dos pais torna-se fundamental, a fiscalização da Justiça é imprescindível, mas chegou a hora de fazer uma reflexão ampla sobre a espécie de democracia que estamos construindo ou ajudando a demolir.

Compartilhar: