
O sonho do rock

Os roqueiros, não só os que têm o John no nome ou no sobrenome, sempre tiveram um sonho utópico, acalentado nas letras das músicas. Esta quimera dos roqueiros, por sinal, está cada dia mais distante: a construção de um mundo mais harmônico, sem violência, mais tolerante, menos agressivo, mais amistoso, menos competitivo, mais integrado, menos raivoso, uma espécie de reinado sonoro da paz, mas sem selvageria. Como este era um sonho impossível no meio de uma sociedade cada vez mais consumista, a saída foi tentar criar o embrião da sociedade alternativa nos parques dos festivais que começaram a correr o mundo. O mais famoso deles, o lendário Woodstoock, realizado durante três dias, em agosto de 1969, foi um momento sublime da contracultura. Entrou para a história como um raro exemplo de paz e de harmonia que contagiou 400 mil pessoas e sensibilizou o mundo.
Há 13 anos, Ribeirão Preto ganhou o seu festival que resgata um pouco desse encanto que só o rock possui. No começo, cercado por desconfianças, contava apenas com o entusiasmo dos organizadores e das diminutas tribos de roqueiros. Com o passar do tempo, aqueles acordes amplificados da batida provocante ecoaram pelo Brasil afora e foram ouvidos em plagas distantes pelas gravadoras, pelas principais bandas de rock do país e, principalmente, pela incontável legião de fãs do rock. Em pouco mais de uma década, tal qual o pé de feijão, o João que faz muito barulho cresceu e ficou famoso. Os vizinhos reclamaram do som alto e João teve que tocar noutra freguesia. Trocou o estádio pelo parque para não ter que baixar o volume. Afinal de contas, não dá para ouvir o rock como se fosse a Bossa Nova. Para qualquer músico ou banda de projeção nacional, tocar no João Rock virou clímax da carreira, uma briga barulhenta com direito a votação na internet. Essa efervescência do Festival despertou o seletivo interesse da mídia. As últimas edições da maratona musical foram transmitidas ao vivo pelo canal Multishow. Galera, para ser bom, nem é preciso ser o maior, mas o João Rock dos canaviais, depois daquele mais famoso lá do Rio, soa como principal palco do rock nacional. Palavra de vocalista.

Pela própria natureza, o rock tem um espírito gregário, cheio de vertentes e, certamente por isso, outros gêneros são muito bem acolhidos. Que o diga o lendário Zé Ramalho com o seu Admirável Gado Novo. “Vocês que fazem parte dessa massa, Que passa nos projetos do futuro, É duro tanto ter que caminhar, E dar muito mais do que receber... E ter que demonstrar sua coragem, À margem do que possa parecer, E ver que toda essa engrenagem, Já sente a ferrugem lhe comer...” Ao lendário músico paraibano, cujos versos se inspiram na literatura de cordel, coube a honra de abrir o festival para uma platéia que, seguramente, ainda não tinha nascido quando ele começou a andar pelo Brasil arrastando multidões.
Festival que se preza tem protesto, aquele grito de liberdade que está preso na garganta e não é bem um gol da Seleção Brasileira. Muito pelo contrário. Nesse momento de fina sintonia com a plateia, quando estão no palco, os roqueiros mais radicais costumam abrir “a caixa de gordura”, mas o vocalista do Rappa, Falcão, até que fez um desabafo comedido ao comentar o conturbado cenário do Brasil pré-Copa. Não teve armação, está lá no Youtube para quem quiser ver. O coro com refrão impublicável contra a presidente Dilma Rousseff foi uma espontânea manifestação de revolta da massa.
Bem que a Copa do Mundo poderia ter uma organização parecida com a do João Rock. Entrada rápida, shows no esquema “non stop” em dois palcos, enquanto uma banda toca, outra se prepara, um público estimado em 35 mil pessoas em perfeita harmonia, convivendo pacificamente, sem nenhuma ocorrência significativa. Pelo interior do parque era possível encontrar roqueiros de quatro estados que vieram em 110 caravanas. O clima de amor estava no ar, as paixões floresciam na grama, as tribos curtiam o som pesado do palco universitário, ouvindo os Raimundos com a sua complicada “Mulher de Fases”’. No encerramento, um tributo muito justo foi pago ao “Maluco Beleza”, o maior roqueiro brasileiro de todos os tempos. Infelizmente, o terrão de chão batido da Feapam, com aquela poeira que faz tremer qualquer lavadeira, não é o local mais apropriado para acampar e tentar reviver aquele nostálgico clima que um dia contagiou os jovens de Woodstock. Mas o santo de casa operou o seu milagre. Pelo menos por algumas horas ininterruptas, o festival de Ribeirão reviveu aquele famoso, inesquecível e lendário sonho do rock.