O tempo do preconceito

O tempo do preconceito

As mídias sociais não saem da pauta. A opinião pública do país ainda nem havia esquecido a divulgação indevida das fotos dos corpos do cantor Cristiano Araújo e de sua namorada quando uma nova manifestação preconceituosa ganhou repercussão nacional. Para início de texto, vale observar que as mídias sociais não são responsáveis pelo mau uso, pelas manifestações racistas e preconceituosas que alguns usuários fazem diariamente. O meio não pode ser responsabilizado por isso, embora a facilidade de acesso tenha algo a ver com o uso irresponsável. Uma utilização mais sensata será resultado de um longo processo de conscientização a ser vencido com educação e a devida punição dos infratores.

Por paradoxal que pareça, mesmo com reveses tão acintosos e chocantes, como o ocorrido com a apresentadora do tempo, essa democracia da postagem está contribuindo para um amadurecimento da sociedade. Os racistas e preconceituosos, que estavam escondidos sob o manto do anonimato, todos os dias saem da toca e mostram a sua verdadeira face. Com o desnudamento dessa sombra preconceituosa, essas posturas que vêm à tona poderão ser combatidas. Esse processo de revelação social que está em curso deixa evidente que o preconceito gestado na escravatura ainda persiste 127 anos após a abolição. O racismo colocado às claras choca, mas revela que ainda está incrustado na cabeça de muitas pessoas. O que fica camuflado engana, é maléfico e perigoso, porque leva a conclusões falsas.

Por mais gratuito e ofensivo que tenha sido, o ataque descabido a competente apresentadora do tempo do Jornal Nacional, Maria Júlia Coutinho, conhecida como “Maju”, serve para revelar que o Brasil ainda não é aquele país da democracia racial que os justos sonham e que os desavisados, às vezes, não percebem. Embora o país tenha conquistado avanços, como a introdução das cotas nas universidades, ainda há um longo caminho a percorrer até que os negros tenham condições de igualdade no mercado de trabalho, na educação e até mesmo na televisão brasileira. Não vale a pena reproduzir os textos racistas postados no facebook para não dar mais publicidade ao grupo de infratores, estimado pelo editor-chefe e apresentador, Willian Bonner, em 50 pessoas, no comentário que fez ao vivo no Jornal Nacional (JN). Também não é preciso ser nenhum perito em crimes de informática para ver que os agressores da moral alheia tinham plena consciência de que estavam cometendo um grave crime de racismo. O print da página do facebook do JN indica que alguns dos agressores se esconderam em perfis falsos: “Arthur Frey”, “Karl Jagger” e “Chronick Schaige”. O Ministério Público de São Paulo abriu investigação e declarou que tem mecanismos para identificar esses usuários. “As pessoas acham que estão navegando em um oceano de impunidade, mas já obtive sucesso em outros crimes de racismo na internet”, declarou à imprensa o promotor criminal, Christiano Jorge Santos, que investiga esse tipo de crime desde 2004 e avalia que a incidência aumentou nos últimos anos. Para quem aposta na impunidade, o promotor lembra que o crime de racismo é imprescritível, inafiançável e pode resultar em até três anos de prisão.

Além de receber milhares de manifestações solidárias, a apresentadora entrou para a história do telejornalismo brasileiro. Como a agressão foi postada na página oficial do JN no facebook, na sexta-feira, 3 de julho, Maria Júlia ganhou o direito de resposta numa mídia com abrangência bem maior. Foram preciosos 70 segundos para fazer um discurso histórico no telejornal de maior audiência da televisão brasileira. Firme, mas sem levantar a voz, em um trecho do discurso, a apresentadora mostrou que tem consciência de que o ataque partiu de uma minoria, mas que a solidariedade veio de uma imensa maioria. “A militância que faço é com o meu trabalho, sempre benfeito, com muito carinho, com muita dedicação e competência. Isso é o mais importante. Os preconceituosos ladram, mas a caravana passa”, declarou Maria Júlia.

O que será que despertou a ira dos internautas preconceituosos? Deve ter sido a simbólica revolução que a primeira jornalista negra da televisão brasileira personificou ao apresentar o quadro do tempo com tamanha naturalidade e personalidade. Vinda do “Bom Dia São Paulo” e do “Bom Dia Brasil”, Maria Julia estreou no JN em abril, justamente na fase de “abertura” do telejornal que adotou uma linha editorial mais espontânea, com a conversa informal entre âncoras e repórteres, que deixaram de lado o script engessado. Nesse quesito, Maria Júlia roubou a cena e surpreendeu o país ao informar a previsão num tom coloquial e descontraído. Bonita, elegante e respaldada por sofisticados recursos de computação gráfica, Maju foi responsável por despertar um interesse ainda maior sobre a meteorologia, editoria do jornalismo que, hoje, ganhou importância fundamental, pois deixa evidente o desequilíbrio ambiental e as implicações do tempo no cotidiano das pessoas. A malfadada tempestade do preconceito, Maria Júlia espantou com aquele sorriso típico de quem sabe que se hoje tem chuva, no dia seguinte, o Sol certamente vai se abrir para que a vida continue.

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