A onda da Rocinha

A onda da Rocinha

O noticiário não dá trégua. Apesar dos indicadores positivos da economia — a inflação este ano pode ficar na casa dos impressionantes 3% — vários fatos estampam a falência do estado brasileiro. Na mesma proporção em que antigas doenças contagiosas arrefeceram – dengue, zika e chikungunya – a degradação do sistema público vai se escancarando pelo país afora. Passamos pela fase das malas cheias de dinheiro, carregados pelos braços esquerdo e direito do presidente Michel Temer, Rodrigo Rocha Loures (R$ 500 mil) e Geddel Vieira Lima (R$ 51 milhões, uma mega-sena). No meio dessa turbulência, o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou o senador Aécio Neves do mandato, acusado de pedir R$ 2 milhões à JBS. Agora, a Câmara dos Deputados se prepara para julgar o segundo pedido de impeachment do presidente da República. A corrupção voltará a ser tônica do noticiário que há muito tempo se ressente da famosa agenda positiva. 

Todas essas vicissitudes ficaram pequenas diante das cenas de violência que explodiram na famosa favela da Rocinha no Rio de Janeiro. Na guerra entre traficantes, um deles, o famoso Nem, ex-amigo do goleiro Bruno, consegue comandar uma facção mesmo estando preso no presídio federal de Campo Grande a 1.500 km de distância. No meio de tiroteios diários e diante da incapacidade do Estado em oferecer segurança aos cidadãos, uma população inteira fica refém, sem o elementar direito de ir e vir. Escolas fecham e o comércio para. Nem a presença do Exército intimida os traficantes. 

A caótica situação do Rio de Janeiro, paradoxalmente, a mais bela cidade do país e cartão de visita para o turismo internacional não é obra do acaso, mas de uma sucessão de governos estaduais e municipais desastrosos. Os cariocas e os fluminenses elegeram sucessivamente políticos corruptos que saquearam o Estado e a Prefeitura, enquanto a situação na periferia se degradava pela absoluta falta de infraestrutura básica. Agora,  a conta veio e a população está pagando caro pelos maus governantes eleitos no passado distante e recente. Ao final de todos os processos, o ex-governador Sérgio Cabral será um recordista em anos de condenações judiciais. Hoje já tem quase 60 anos de cadeia  programados. 

A Rocinha, mais antiga favela do Rio de Janeiro, com uma população estimada em 150 mil pessoas, simboliza essa falência do Estado, um padrão urbanístico caracterizado pelo abandono da periferia. Essa ausência permite o crescimento do tráfico de drogas, do roubo e da violência sem limites. Com localização próxima das residências de alto padrão, a favela também simboliza o enorme contraste social brasileiro, um símbolo da desigualdade social que se originou no descaso do poder público com as classes mais pobres. A falta de estrutura, a construção de barracos, a degradação das áreas verdes e o crescimento desordenado transformaram a Rocinha num grande caldeirão totalmente fora de controle. Além da violência exacerbada, a favela possui ruas estreitas que dificultam a penetração da luz solar. As incontáveis vielas pouco ventiladas se transformaram num dos principais focos de tuberculose do país, criando um sério e preocupante contraste social com a paisagem do Rio de Janeiro.  

A onda de violência que vem da Rocinha não se trata de um fenômeno isolado, restrito ao Rio de Janeiro. Por todo o país, a ausência do Estado na saúde, na assistência social e, principalmente na segurança pública, possibilita a criação de territórios apartados. Trata-se de um fenômeno sorrateiro, quase imperceptível aos olhos do cidadão comum que, a priori, considera essa realidade distante da sua vida cotidiana. 

Guardadas as devidas proporções, em Ribeirão Preto, a queda acentuada da qualidade da infraestrutura urbana, ocorrida nos últimos anos, já produz territórios sem lei e sem controle, onde até mesmo a polícia não entra a qualquer hora. Recentemente, depois que um homem foi morto, o toque de recolher foi imposto no bairro Ribeirão Verde, zona leste da cidade. O comércio fechou as portas e os ônibus não circularam para cumprir uma determinação do tráfico de drogas.  O toque de recolher não se restringe a essa região da cidade. Na zona norte, o mesmo estado de pânico já aconteceu por diversas vezes. Fatos semelhantes se repetiram na zona oeste nas imediações do Jardim Progresso. 

Os estudiosos definem a síndrome com uma situação crítica, capaz de despertar insegurança e medo. Por ora, o cidadão comum convive com a falsa sensação de que o fenômeno da Rocinha ou dos bairros da periferia de Ribeirão Preto são anormalidades distantes da sua realidade. Essa percepção mudará radicalmente um belo dia, do nada, quando acordar e descobrir que tudo a sua volta está completamente dominado. 

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