
A onda de maus exemplos
Não se poderia almejar que o Brasil, um país com 210 milhões de habitantes e uma enorme diversidade racial e cultural, fosse um poço de tranquilidade, sem choques ou conflitos. No entanto, quem observa a realidade dos dias atuais, constata um processo de radicalização potencializado pela internet. Nada escapa das câmeras. Os fatos são gravados e jogados na rede, instantaneamente, causando uma enorme repercussão. O que antes passava batido agora ganha visibilidade imediata e vira tema de julgamento pela opinião pública. Não haveria problema algum se as pessoas mantivessem um nível mínimo de civilidade, sem ofensas e agressões, mas o que se vê nas redes sociais é um festival de insultos, manifestações racistas e preconceituosas. Ainda tem o agravante das onipresentes milícias digitais sempre a postos para atacar quem pensa diferente.
O que há de novo nesse front de batalhas digitais é a pouca disposição das partes para encontrar soluções negociadas e um ânimo exagerado para enveredar pelo confronto. O ingrediente adicional nesse cenário é o mau exemplo que vem de cima, das autoridades públicas que deveriam trabalhar para desarmar os espíritos e contemporizar as situações de conflito. Em vez disso, estão colocando fogo no circo. Nos últimos tempos, representantes dos mais variados graus e esferas de poder disparam comentários estapafúrdios que ofendem vários segmentos da sociedade. Muitos desses ocupantes de cargos públicos perderam a noção de espaço e o senso de oportunidade, ignorando os limites de cada função.
Uma autoridade que entrou nessa onda foi o ministro da Economia, Paulo Guedes, que recebe muitos elogios do mercado, mas que com frequência faz declarações que são incompatíveis com a responsabilidade que possui. Num curto espaço de tempo, Guedes já flertou com a volta do Ato Institucional Número 5, chamou os funcionários públicos de parasitas, disse que a pobreza é responsável pelo desmatamento da Amazônia e que era preciso brecar a ida das empregadas domésticas à Disney. Diante da repercussão da declaração, culpou a mídia com a surrada desculpa de que a “frase foi retirada do contexto.” Ao pedir desculpas o ministro escorregou de novo. Disse que os brasileiros deveriam ir ao Nordeste em vez da Disney. Esqueceu que não está entre as suas atribuições de ministro definir os destinos turísticos das famílias brasileiras.
No degrau mais alto dessa insanidade das autoridades públicas, um dos casos mais assustadores e inéditos aconteceu na pacata Sobral no interior do Ceará que até então era conhecida por ser a terra de Renato Aragão, um comediante que por sinal se tornou símbolo da paz e da harmonia. Investido do cargo de senador licenciado, Cid Gomes, irmão do ex-presidenciável Ciro Gomes, dirigiu uma retroescavadeira em direção a um paredão grevista de policiais militares. O ato inadmissível provocou outra reação violenta. Os policiais reagiram atirando no senador. Nesse teatro do absurdo, os policiais, que tem por dever constitucional zelar pela lei e pela ordem, furaram os pneus das viaturas em que trabalham. Também pressionaram os empresários locais para que fechassem as portas do comércio. Na raiz dessa convulsão social está a greve dos policiais que deveria ter sido negociada de outra forma. Até aqui os irmãos Gomes eram conhecidos pelo discurso inflamado das campanhas eleitorais. Não faz parte do script, atacar adversários com máquinas pesadas.
Em uma cerimônia pública em Brasília, Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República, chamou os parlamentares de chantagistas e ainda emendou um palavrão. O presidente Jair Bolsonaro tem sido o grande propagador de ataques que ofendem categorias, entidades e principalmente as mulheres. Independentemente da posição que cada político tem o direito de defender, o comportamento do presidente e de alguns dos subordinados ultrapassou as raias do aceitável. As ações ofensivas provocam reações de mesma intensidade. Mesmo que aparentem fragilidade, a constituição e instituições estabelecem limites para todos os representantes públicos. Os braços da lei se mexem lentamente, mas são tentáculos longos e abrangentes. A Justiça demora, mas chega. Quem opta pelo perigoso jogo do confronto um dia pode experimentar o sabor amargo da derrota. A história está cheia de exemplos de governantes que passaram dos limites e no final das contas se deram muito mal.