
Os tons do relacionamento
Com frequências cada vez mais curtas, fenômenos de mídia sacodem a vida das pessoas. A bola da vez, de amplitude internacional, é o filme “50 Tons de Cinza”, baseado em um livro de mesmo nome da escritora inglesa E. L. James. A obra vendeu cinco milhões de exemplares no Brasil e mais de 100 milhões no mundo, o que dá a dimensão do fenômeno. Surpreendentemente, muita gente pouco afeita à leitura devorou os três livros da série em poucos dias. A mesma volúpia pode ser constatada na disputa pelos ingressos do filme. A exibição em salas lotadas revelou duas plateias com expectativas bem distintas. Entre a crítica especializada e os espectadores, percebe-se uma divisão muito clara diante da clássica pergunta: o que você achou do filme? Enquanto a esmagadora maioria dos homens não viu muita graça, a maioria das mulheres ficou encantada com os atributos do misterioso sr. Christian Grey. Não deixa de ser uma contribuição do blockbuster para o equilíbrio dos relacionamentos. Em uma época em que o discurso homogeneizador tenta instituir a igualdade onde ela não existe, o filme instigante relembra que homens e mulheres são diferentes ainda mais quando os temas em pauta são o erotismo, o romance e a sexualidade. No campo fértil das fantasias, então, onde não há espaço para o moralismo do certo ou do errado, cada gênero tem as suas predileções, muitas delas irreveláveis.
A genealogia e o gênero dessa produção explicam um pouco das reações tão díspares, da indiferença masculina à empolgação feminina. A começar pela escritora inglesa que para ceder os direitos da obra exigiu da produção cinematográfica uma fidelidade quase absoluta. E.L. James ainda impôs que a direção do filme fosse de uma mulher. A escolhida foi Sam Taylor-Johnson, uma diretora pouco conhecida e sem nenhuma produção relevante no currículo. Outra definição que revela a visão feminina nessa obra refere-se à escolha da atriz, Dakota Johnson, para interpretar a recatada Anastasia Steele (Ana). Já do ponto de vista masculino, a atriz ficou muito longe daquele padrão de beleza hollywoodiano adotado em filmes do gênero.
Se Ana apresenta-se o tempo todo com um guarda-roupa básico, quem aparece com produção caprichada, recheado de atributos, é o príncipe da modernidade com o corpo atlético, o olhar sedutor, a bilionária conta bancária e a sensual gravata cinza. Claro que não só o dinheiro, o helicóptero e os carrões povoam o imaginário feminino. A gentileza, tão escassa hoje em dia, também emerge como atributo importante, lado a lado com a firmeza. A propósito deste particular vale mencionar o comentário escrito pela jornalista, Isabela Boscov, na crítica da revista Veja. Quando Ana começa a vomitar, depois de ter bebido demais em uma festa, em ato inconteste, digno de um legítimo cavalheiro, o príncipe segura seus cabelos. Numa alusão ao “Senhor dos Anéis”, outra trilogia de retumbante sucesso, a jornalista assinala que hoje em dia “é mais fácil topar com um elfo ou com um hobbit por aí do que com um Christian Grey.”
Expectativas divergentes formam um clássico de qualquer história de amor, a mais banal delas antagoniza a riqueza e a pobreza. Outra vertente pode ser provocar a dor para chegar ao prazer. Nessa perversa relação amorosa se estabelece o jogo doentio entre o dominador e a submissa. Enquanto o Christian dos sentimentos embotados quer aprisionar Ana no seu quarto vermelho dos jogos masoquistas, a ingênua Ana sonha com o dia em que o príncipe seja seduzido pela paixão verdadeira. Para regulamentar a relação de personalidades tão discrepantes, a autora recorreu ao surreal contrato que específica as cláusulas da perversão, artigos com chibatadas que deixariam ruborizado o judiciário de qualquer comarca.
Desde que o filme entrou em cartaz, comenta-se que as vendas de cordas, de braçadeiras e de outros apetrechos aumentaram nas lojas de material de construção. Os fenômenos de massa costumam produzir exageros comportamentais. Talvez “50 Tons de Cinza” tenha obtido tanta visibilidade e repercussão por retratar essa visão muito em voga e um tanto restrita do romantismo, cada vez mais dependente da sexualidade. Hoje, o desempenho sexual virou uma espécie de termômetro excludente das relações. Embora essa seja uma face importante, não pode ser a única medida, sob pena de instituir o regime da perfomance amorosa absoluta da qual o sr. Grey tornou-se um patético refém. Se a vida fosse como o filme, haveria uma tormenta constante — o medo de falhar e de não corresponder — capaz de decretar o fim de uma relação. Constantemente, essa visão é reforçada por revistas masculinas e femininas que “facilitam” a vida conjugal, trazendo receitas prontas para reacender a libido como se a sexualidade fosse um prato a ser servido em sistema fast food. Fora do mundo da fantasia, os relacionamentos sustentáveis não são feitos por amantes ensandecidos. As belas e duradouras histórias de amor vão além dos shows de virtuosismo sexual e das fantasias em tons meios cinzentos.