
A palavra feminina
Mais um ano está terminando e de nada adianta reclamar da velocidade do tempo. O mundo está mesmo acelerado pela tecnologia e não retornará mais ao seu pacato ritmo de outrora. A era da instantaneidade chegou para valer com consequências e reflexos imediatos. Para ficar na definição mais comum, 2018 foi um ano de altos e baixos em que se pode eleger algumas palavras representativas para traduzir os principais fatos e acontecimentos. Entidades internacionais escolheram os vocábulos justiça e até mesmo tóxico. Sim, este entra para a história como o ano em que o plástico que polui os oceanos e coloca em risco a vida dos animais foi declarado inimigo da consciência ambiental. Uma conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu a toxidade do plástico como uma questão mundial. Sobrou até para o canudinho que está com os dias contados.
Contudo, a escolha mais apropriada às circunstâncias atuais talvez seja a opção do Dicionário Merriam-Webster, um dos principais na língua inglesa, que escolheu o “feminismo” como a palavra do ano. O termo foi o mais procurado no site, com as buscas pela palavra subindo 70% em relação ao ano passado. Esse interesse tem tudo a ver com a realidade brasileira, remetendo a situações de retrocesso, violência e desigualdade extrema. O ano que termina também será lembrado pela reação das mulheres contra o assédio sexual. Campanhas como “Me Too” e “Mexeu com uma, mexeu com todas” sacudiram estruturas, mas ainda não são suficientes para mudar uma realidade opressora. O primeiro galã internacional a ser desmascarado foi o ator Kevin Spacey, personagem central da série House of Cards. Na versão brasileira, o vilão foi o José Mayer acusado de assediar uma figurinista da Rede Globo. Uma onda de protestos movimentou artistas e celebridades. Se as tentativas de assédio já merecem repúdio, o que se pode dizer então do fato consumado. O ciclo anual se fecha com o país estarrecido diante da avalanche de denúncias contra o médium João de Deus de Abadiânia (GO), acusado por mais de 300 mulheres de assédio, estupro e abuso sexual. A análise das notícias de 2018 revela que o respeito e a igualdade feminina ainda estão muito longe de parâmetros civilizados. Pessoas que teoricamente deveriam proteger e dar um apoio espiritual se aproveitam da fragilidade de suas vítimas para cometer as maiores barbaridades em nome da fé.
A esse fato estarrecedor se juntam outras tantas agressões contra a condição da mulher, a grande maioria de violência extrema e assassinatos cometidos por maridos e ex-maridos enciumados. Não é preciso recorrer às estatísticas para constatar que as mulheres continuam sendo subjugadas, seja pelo preconceito, pela discriminação e até mesmo pela violência. Não custa relembrar um dos fatos mais importantes e significativos do ano que está terminando: a execução da vereadora Marielle Franco em março. O crime ocorreu no Rio de Janeiro, hoje um dos lugares mais violentos do país. Teve uma motivação política, pois o trabalho da vereadora incomodava os grupos que comandam a política local. Também foi um atentado contra a condição feminina.
Portanto, muito apropriada a escolha do dicionário inglês. As tentativas de assédio, o assassinato da vereadora no Rio de Janeiro e a violência sexual praticada pelo médium formam um cordão obscuro que perpassa a realidade brasileira, expondo a fragilidade da condição feminina no país. Sob este enfoque, o resultado das urnas manteve uma representação feminina muito aquém do ideal. Eis aí uma tomada de consciência que necessita de uma reação em 2019.